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Uma epígrafe para o século XXI: “o êxtase da santimônia”

Em romance publicado antes da ascensão das redes sociais, Philip Roth encontrou a expressão exata para definir a sanha dos justiceiros de internet

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 31 out 2018, 21h48 - Publicado em 16 nov 2017, 21h05
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  • Abandonai toda esperança, vós que entrais – o trabalho liberta: todo inferno precisa de uma inscrição grandiloquente em seu pórtico. Pois quatro palavras deveriam piscar, vermelhas, nas páginas iniciais de Facebook, Twitter e similares menos cotados: o êxtase da santimônia. 

    A expressão antecede a ascensão das redes sociais. Aparece em um romance publicado, significativamente, no ano de 2000: é como se fosse a epígrafe do século de Mark Zuckerberg.  Foi cunhada pelo gênio de outro judeu americano, Philip Roth. Eis a voz ímpar de Nathan Zuckerman, o delegado ficcional que narra vários romances de Roth, nas primeiras páginas de A Marca Humana: “…a mais antiga paixão comunal dos Estados Unidos, historicamente talvez o seu mais traiçoeiro e subversivo prazer: o êxtase da santimônia”.

    Essa antiga paixão e esse velho prazer, dizia Zuckerman no trecho anterior que eu preguiçosamente substituí por reticências, foi reavivada, em 1998, pela famosa felação no Salão Oval da Casa Branca.  Zuckerman/Roth ironiza a comoção nacional em torno do caso fugaz do presidente Bill Clinton com a estagiária Monica Lewinsky, e o título original, The Human Stain, mais literalmente “a mancha humana”, alude aos vestígios de sêmen presidencial que ficaram em um vestido da estagiária. Até aqui, o êxtase da santimônia aparece como um atributo do puritanismo que chegou à América com o Mayflower, e Zuckerman é especialmente ácido com os conservadores – notadamente, William F. Buckley – que tentaram estraçalhar o presidente democrata. Mas logo se verá que pessoas de outro corte ideológico também se comprazem nesse êxtase. O pano de fundo do mundo político assombrado pelo puritanismo em sua versão mais reta e clara casa com perfeição à história que será narrada nas páginas seguintes – a queda em desgraça do professor de literatura Coleman Silk, também ele acossado pela vigilância puritana, agora em sua versão progressista, feminista e pós-moderna. Silk, afastado da universidade em que lecionava por causa de uma acusação – fajuta – de racismo, começa um caso com uma faxineira, bem mais jovem, que trabalha na mesma universidade, e esse amor tardio não será aceito nem perdoado pelos agentes da santimônia. 

    Não entrarei nos detalhes do enredo (se não leu A Marca Humana ainda, leia: há uma virada sensacional na história de Coleman Silk). Para este meu texto e estes nossos dias, interessa apenas a definição capsular com que Philip Roth capturou a sanha moralista e justiceira do século XXI: o êxtase da santimônia. Ainda que Roth o defina como apanágio dos Estados Unidos, não há semana, não há dia em que a internet em português brasileiro não transborde de santimônia extática. Há sempre um Coleman Silk da hora, apedrejado por racismo, jogado na fogueira por homofobia, garroteado por machismo. Os autos-de-fé simbólicos são com mais frequência motivados por declarações do que por ações, pois não há crime mais hediondo que o crime de opinião (há três anos, quando um pivete foi espancado e acorrentado a um poste, no Rio de Janeiro, a fúria santimonial voltou-se toda contra a comentarista de TV que disse umas idiotices sobre o caso, e os linchadores virtuais que pediam sua punição por “apologia ao crime” até esqueciam de pedir a prisão dos linchadores reais do garoto).

    O mecanismo simplório do curtir-e-comentar amolda-se placidamente à truculência verbal dos novos inquisidores. O leitor que tem conta em uma rede social já terá testemunhado os rituais do êxtase da santimônia: alguém publica a prova do crime – foto, vídeo, tweet, notícia -, nomeia e acusa o criminoso; e em seguida o espaço de comentários abre-se para um concurso de indignação, no qual todos exprimem seu nojo, seu asco, seu vivo repúdio ao racista, ao fascista, ao pedófilo, ao degenerado do momento. A Lei de Godwin, segundo a qual quanto mais se estende uma discussão na internet, maior é a probabilidade de alguém fazer uma analogia com o nazismo, eventualmente opera nessas sessões. Mas a “paixão comunal” dos justiceiros não é o debate, e sim a execração pública. Quanto mais se amplia o número de comentários de repúdio, mais se torna provável que apareça um emoji de vômito.

    A acusação pode ser cabalmente falsa, o delito talvez não seja tão grave quanto se alega, e o dolo com frequência não é nem intencional  nem substancial, mas essas miudezas não importam. Tampouco importa a reparação às vítimas – até porque essas não são pessoas, mas imprecisas abstrações conceituais, fantasmáticas categorias sociológicas, ou, com mais frequência, delicadas sensibilidades coletivas que se ofendem e se inflamam ao menor toque da crítica. O que realmente importa é o duplo prazer da execrar os outros enquanto se afirma a própria virtude.

     

    ***

     

    O bom leitor já adivinha o episódio que motiva essa breve diatribe contra os justiceiros das redes: William Waack. O exame do caso pede ponderação – tudo que a intensidade dos que o defendem e dos que o atacam (grosso modo, estes à esquerda e aqueles à direita) não aceita. “Isentão”, afinal, é a ofensa mais ecumênica das redes sociais. (Quase ouço o Facebook, na voz cavernosa com que Deus fala nos filmes de Cecil B. de Mille,  recitando os versículos do Apocalipse: “porque és morno, e nem és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca”. )

    Coleman Silk, de A Marca Humana, perde sua cátedra por causa de uma acusação espúria de racismo: ele emprega, em sala de aula, a palavra spook, na acepção mais corrente no inglês contemporâneo, de “fantasma, assombração”; para sua infelicidade, o termo também é uma gíria pejorativa para designar negros, quase tão infame quanto o mais popular nigger. Por contraste, a expressão “coisa de preto”, que Waack emprega no vídeo vazado, não comporta ambiguidades: é inequivocamente racista (não por outra razão ele baixa a voz para pronunciá-la).

    É auspicioso, afinal, que aquele racismo informal de tantos ditos e gracejos que já foram corriqueiros não seja mais aceito. Colegas de Waack têm vindo a público para testemunhar que ele, embora  tenha empregado a frase infeliz, não é racista. Mas será ocioso debater se a “essência” de uma pessoa está ou não contida na linguagem que ela emprega. William Waack é um comunicador, e um comunicador se define publicamente pelas palavras que fala. A natureza de sua profissão fragiliza ainda outra linha comum que os defensores têm empregado: era um comentário privado, maliciosa e tardiamente divulgado por um ex-funcionário da casa, e não se deveria demitir um profissional por aquilo que ele diz em privado. O caso é que, no momento do comentário, William Waack, embora fora do ar, estava em um ambiente profissional. E ainda que estivesse em uma mesa de boteco (onde sempre haverá um celular pronto para transmitir as impropriedades do jornalista célebre para as redes), ele era o rosto de um dos telejornais do canal de TV que é líder de audiência. William Waack representava a Globo, e a Globo não pode ser representada por quem diz “coisa de preto”.

    Caso encerrado, então.

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    No entanto…

    No entanto, as coisas não se deram com essa serenidade argumentativa. Depois que o vídeo caiu nas redes,  a repercussão foi avassaladora e a demissão, imediata. O fervor, o regojizo com que se condenou  William Waack: no dia seguinte, um rápido passeio pelo Twitter descortinava declarações de ódio mortal, imprecações, palavrões, ameaças de agressão física. Não vejo nisso nenhum senso de justiça: é antes, o prazer perverso de ver um “grande” cair. Será essa a voz de um país mais tolerante?

    Seguiu-se, fatalmente, a distorção política do episódio. Como as redes são o território da indistinção geral, prontamente se tratou de estender a indelével mancha humana do jornalista caído para todas as pautas e ideias que ele porventura tenha defendido em sua longa carreira. William Waack é racista, logo o “neoliberalismo” leva à exclusão social dos negros. Willliam Waack é racista, portanto a “meritocracia” é só um disfarce do novo regime escravocrata. William Waack é racista, portanto foi golpe. Não exagero: vi todos esses argumentos (nem sempre expressos em bom português) em posts e artigos espalhados pelo rés do chão da internet. Na culminância disso tudo, tivemos, no Twitter, a inacreditável proclamação da presidente impedida: “eu sou uma coisa de preto”.

    “Hoje foi William Waack. Amanhã qualquer um de nós pode ter a reputação arruinada por um pequeno ato ou comentário impensado”, dizem alguns. Estão errados: não será amanhã, já foi ontem. Tim Hunt, Nobel de Medicina, perdeu sua posição no University College London  por um comentário bobo mas inocente, uma piada ruim sobre mulheres no laboratório. E que dizer de pessoas comuns, anônimos que deixam de o ser quando imagens suas “viralizam” na internet? O casal que foi ao protesto pelo impeachment com uma babá tornou-se o símbolo do elitismo excludente dos antipetistas; os pais que levaram o filho adotivo negro ao carnaval vestido como seu personagem favorito da Disney – por acaso Abu, o simpático macaquinho de Alladin – só poderiam ser, claro, racistas impenitentes.

    “Foi o verão americano em que a náusea voltou”, diz Nathan Zuckerman sobre os animados tempos do escândalo na Casa Branca. “Quando a mesquinharia das pessoas foi simplesmente esmagadora, quando uma espécie de demônio ganhou livre curso sobre a nação e, dos dois lados, as pessoas se perguntavam: ‘por que estamos tão alucinados?'”. As mesmas palavras poderiam ser usadas para descrever o permanente estado de agitação maníaca com que tantos acessam o Facebook. A rede fornece aos acusadores – que são também os juízes –  um vestido manchado por dia. A náusea nunca mais nos deixou e aquele demônio mesquinho corre cada vez mais solto e sorridente. Uma diferença: as pessoas hoje  já nem percebem que estão tão alucinadas.

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