A lição de liberdade que aprendemos em Os Simpsons
Intervenção lembra um episódio antigo que ainda ensina muito sobre censura - e, de quebra, convida a rir daquele vídeo sobre fantasias proibidas no Carnaval
Passei a infância vendo animais levando tiros de espingarda, espatifando-se em quedas do alto de edifícios e penhascos, sendo torturados em engenhocas estranhas que nada devem à imaginação do Kafka de Na Colônia Penal e levando bordoada na cabeça de toda sorte de objeto – martelos, malhos, tacos de beisebol, bigornas. Essa galeria de atrocidades fez parte da dieta televisiva da minha geração, que cresceu divertindo-se com Pernalonga, Papa-Léguas e Pica-Pau. Não sou nostálgico, e nem acho que as crianças de hoje percam grande coisa por não verem o pobre coiote sendo esmigalhado por uma bola de demolição. Ainda assim, cumpre notar que, ao contrário do que previam os pedagogos progressistas mais delicados, essa exposição tão precoce e tão extensa à selvageria dos desenhos animados não me converteu em um adulto propenso à violência (salvo a tal “violência simbólica”, que exerço regular e prazerosamente neste blog).
Não havia sangue nas animações da Warner e da Hanna-Barbera. Acho isso um tanto estranho. Sim, claro, a pancadaria era toda fantasiosa, com inúmeras subversões da física newtoniana, como a clássica cena do personagem que corre pelo ar e só começa a cair quando se dá conta de que está sobre um abismo. Ainda assim, é notável que o sangue tenha se mantido um tabu, uma interdição puritana. O animal antropomórfico esmagado por um rolo compressor ou esquartejado por uma hélice de avião não vertia uma só gotinha de líquido rubro.
Tomei um choque, portanto, quando, já em idade adulta, vi o nariz de Nelson Muntz sangrar. Foi no quinto episódio da primeira temporada de Os Simpsons, em 1990. Bart envolve-se em uma briga com Nelson, o bully da escola, e quase sem querer acerta um golpe no contendor. O sangue era de um vermelho bem vivo, naquela paleta primária própria da criação de Matt Groening. Um personagem de desenho que sangra! Há algo novo aí, pensei, com o entusiasmo ingênuo que a cultura pop me inspirava então. Ainda inspira, mas bem mais raramente: Os Simpsons perdeu o frescor tem já uns vinte, talvez trinta anos; South Park, até onde tenho visto, parece conservar a verve iconoclasta, e meus filhos me apresentaram recentemente às delícias perversas de O Mundo de Gumball. Mas estes seriam assuntos para outro texto e outro autor. Só me perdi nessa digressão afetiva sobre desenho animado para chegar a um episódio em particular de Os Simpsons, cujo tema é uma renitente preocupação deste blog: a liberdade de expressão.
Segunda temporada, episódio Itchy & Scratchy & Marge. Para os neófitos no universo de Os Simpsons (que eu suponho raros…), uma explicação prévia: Itchy & Scratchy, ou Comichão & Coçadinha, na saborosa tradução brasileira, é um desenho dentro do desenho, o programa televisivo favorito de Bart e de sua irmã Lisa. Comichão, o rato, submete o gato Coçadinha a suplícios inomináveis, em uma paródia extrema de outro clássico do sadismo infantil, Tom & Jerry. Pois no episódio citado Marge fica alarmada quando sua filha caçula, Maggie, desfere um golpe de malho na cabeça do pai, Homer. A mãe ansiosa não entende como seu bebê de colo pode ter aprendido a se comportar de modo tão violento. É então que começa a prestar a atenção à dupla de animaizinhos monstruosos que seus filhos adoram ver na TV.
Marge deflagra uma campanha contra os estúdios que produzem Comichão & Coçadinha. Por força de boicotes e passeatas, afinal consegue seu objetivo: obriga os criadores a extirpar qualquer traço de violência do desenho animado. Comichão e Coçadinha tornam-se amigos completamente inofensivos, amorosos e muito, muito chatos (mais ou menos como aconteceu com Tom & Jerry em versões tardias, dos anos 70). O programa já não atrai as crianças, que então desligam a televisão e saem à rua para brincar. A sequência com a criançada redescobrindo brincadeiras de antanho – pipa, amarelinha, pião, bola de gude – ao som da Pastoral de Beethoven é Os Simpsons no topo da inventividade. Uma joia de kitsch irônico.
Então vem o plot twist, a virada imprevista e improvável no enredo: anuncia-se que o Davi vai deixar seu pedestal florentino para fazer um tour pelos Estados Unidos, e claro que o peladão renascentista fará uma parada na cidade que é o microcosmo do país – Springfield, lar da família Simpson. As carolas da cidade buscam o apoio de Marge em mais uma cruzada moral: impedir que a estátua nua seja vista pelas inocentes criancinhas da cidade. Marge não abraça essa causa: é Michelangelo! Mas por que, perguntam a ela em um programa de debates na televisão local, ela acredita que Comichão & Coçadinha deve ser proibido e o Davi não? Marge não tem resposta. A estátua é, no final, exibida em um museu da cidade. E o desenho animado com o rato que amarra o gato nos trilhos do trem recupera toda sua graça e violência.
O argumento é desenvolvido como o simplismo próprio de um episódio de desenho animado, mas nem por isso é menos potente: se admitimos a censura para notórias porcarias, também teremos de admiti-la para notáveis obras-primas. Não se trata aqui de recorrer a um forçado slippery slope – a falácia de extrair de um evento consequências cumulativas que não lhe são necessárias (“começa com o casamento gay e em seguida vai ter homem casando com cabra”). A censura a um desenho animado violento não trará obrigatoriamente o veto à Medusa de Caravaggio ou aos contos mais cruéis coletados pelos irmãos Grimm (João e Maria é de uma truculência impressionante). Mas o critério com que se proíbe um vale para o outro.
Foi com essa compreensão que, logo depois de os justiceiros morais terem fechado o Queermuseu (minha posição a respeito aqui), muitos começaram a postar, nas redes sociais, obras de arte consagradas que retratam relações homossexuais e outros temas que arrepiavam a turma associada ao MBL. Os idiotas da objetividade (para roubar a expressão de Nelson Rodrigues) reclamavam: “então você está comparando a ‘criança viada’ a Da Vinci?”. Não, nada disso: a intenção era sublinhar que os mesmos parâmetros usados para vetar a “criança viada” dariam amparo à censura de vários momentos altos da arte.
Meu favorito nessa leva de imoralidades clássicas é o Rubens que o leitor pode admirar abaixo. Representação delicadamente erótica do mito de Leda e o Cisne – ou apologia da zoofilia?
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O Princípio Comichão & Coçadinha – vamos chamá-lo assim – pode ser aplicado a inúmeras ocasiões em que a censura levanta seu focinho asqueroso. Caso recente: Só uma Surubinha de Leve, funk de MC Diguinho, acabou banido de plataformas de streaming por causa da grita de que faria “apologia ao estupro”. A insuficiência dessas acusaçõ
es já foi muito bem dissecada por Joel Pinheiro da Fonseca em sua coluna na Folha de S. Paulo e por Rodrigo Cássio Oliveira em dois artigos de fôlego (links aqui e aqui) no excelente Estado da Arte. Tenho pouco a acrescentar a esses textos – vou apenas recorrer ao princípio simpsoniano que desenhei acima. Se banirmos Só Surubinha de Leve pelas supostas referências a estupro e violência contra a mulher, não teremos de estender a interdição a canções em tese mais respeitáveis? Joel lembra, entre outras, Every Breath You Take, do Police, o melô do ex-namorado obsessivo e assediador, e Hey Joe, de Jimi Hendrix, sobre um homem que mata a mulher infiel a tiros. Podemos evocar ainda Smack My Bitch Up, do Prodigy, cujo vídeo levantou algum barulho quando foi lançado, em 1997. Pessoalmente, gosto de duas dessas três músicas e por isso fico contente que as plataformas digitais não sejam coerentes em suas políticas de exclusão. Essas e outras canções que potencialmente caberiam na categoria “apologia ao crime” continuam lá para quem quiser ouvir.
Mas por que se restringir à música popular? Por que não purgar também a literatura brasileira de possíveis “apologias ao estupro”? Rubem Fonseca, cuja coletânea de contos Feliz Ano Novo foi censurada pela ditadura, enfrentaria a tesoura novamente. No conto O Cobrador, da coletânea homônima, há a descrição bruta e crua de um estupro cometido pelo protagonista. Ele diz que a vítima chegou ao orgasmo antes dele. É a percepção limitada do personagem-narrador, claro. Ainda assim, levanta-se uma possibilidade perturbadora: a mulher estuprada pode ter prazer no ato de submissão. É uma ideia bem pouco palatável para sensibilidades alvoroçadas pelas campanhas contra a “cultura do estupro”. Deve-se apagar, por isso, a obra de um dos melhores contistas brasileiros?
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Com adaptações, o Princípio Comichão & Coçadinha talvez possa ser aplicado não só à arte, mas também ao campo estrito da política. Ainda hoje, dia 8, uma decisão judicial proibiu a atividade, em São Paulo, do bloco carnavalesco Porão do Dops, que pretende exaltar figuras infames da ditadura como o coronel Ustra e o delegado Fleury. A decisão liminar arrola a sempre equívoca figura da “apologia” do crime de tortura (Saló, de Pasolini, e o livro de Sade em que o filme foi inspirado se qualificam?). Sejamos claros: a abjeção moral e a estupidez política desse bloco são evidentes. Mas a liberdade de expressão é sempre a liberdade daquilo que desprezamos (cheguei a dizer que detesto o funk do MC Diguinho? Não? Pois fica dito), e até a liberdade de quem detesta a liberdade.
Quantas outras manifestações políticas seriam banidas se aceitarmos os critérios legais com que se proibiu o Porão do Dops? Consigo pensar na bandeira de um partido menor da coalização que há pouco tempo compunha o governo federal – a bandeira que representa um regime totalitário que, no século XX, promoveu a tortura, o assassinato em massa, a prisão e a execução de dissidentes, a censura. Será proibida por liminar?
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Para encerrar, um tópico carnavalesco não diretamente relacionado ao Princípio Comichão e Coçadinha, mas ao qual não resisto. Comecei falando de desenho animado, e termino com um desenho desanimado: tenho de comentar aquele vídeo impagável do site Catraca Livre (para quem ainda não viu e riu, aqui)! Trata-se de um tutorial progressista para fantasias de carnaval: quais não podem ser usadas (quase todas), quais podem (só três categorias: super-heróis, unicórnios e… plantas!).
Naquela levada progressista-dodói típica do site, o vídeo faz críticas a fantasias tradicionais. Com alguma generosidade, até se poderia entender o “não use” como recomendação, não como desejo censório – não fosse pela sentenciosa vozinha de menina ofendida que narra o vídeo, a qual não convida à generosidade. Conselhos sobre o que se deve ou não vestir em uma ocasião festiva deveriam estar no campo da etiqueta, não da ética. Os livre-catraqueiros, porém, têm convulsões de pregador dos Fim dos Tempos: arrependei-vos, machistas, preconceituosos, homofóbicos, transfóbicos, apropriadores culturais! O vídeo já começa nesse tom de catequese, explicando por que homem fantasiado com roupa feminina é errado. Adiante, quando baixa o “não pode” sobre fantasias de Iemanjá e de muçulmano (sic), a voz ofendidinha fala em “desrespeito à religião”. Ora, é exatamente o mesmo argumento usado pelos justiceiros morais que criticaram o quadro de Jesus com braços de divindade indiana no Queermuseu. MBL e Catraca Livre, quem diria, se dão as mãos…
A malhação humorística do vídeo em redes sociais têm sido ampla. Não há como não rir do ataque a estereótipos que só repisa os mais batidos esterótipos: entre os ofendidos com o Carnaval, aparece um índio que lembra o Marcio Garcia no filme O Guarani, um cigano de novela e um muçulmano que, claro, usa roupa de xeque árabe. Depois de ter rido muito com amigos, porém, me baixou um tremendo bode da coisa toda. Em si mesmo, o vídeo é insignificante, mas representa um triste viés da antipolítica contemporânea (Mark Lilla, bom pensador da esquerda americana, tem muito a dizer sobre isso). Esse what not to wear contra-carnavalesco é mais uma expressão do êxtase da santimônia, na expressão de Philip Roth que vale como epígrafe para o século XXI.
A santimônia, como prova o Catraca Livre, detesta a alegria e o humor. E por isso mesmo carece de todo senso de ridículo.