Ah, o apelo de ter um mercado de 1,3 bilhão de pessoas – e de fazer um turismo bacana, e ainda ganhar uma mala cheia de dinheiro da China Film Group. Não é que seja pouco, mas é só o que pode explicar que Matt Damon e o diretor Zhang Yimou tenham embarcado na canoa opulenta, mas decididamente furada, que é A Grande Muralha, uma aventura sem pé nem cabeça segundo a qual a Grande Muralha da China foi construída não foi para barrar os nômades mongóis e outras gentes brabas como eles, e sim alienígenas de computação gráfica. Eu, pessoalmente, continuo tendo mais medo dos mongóis: estudos genéticos recentes estimam que 1 em cada 200 homens vivos no planeta hoje são descendentes de Gengis Khan, porcentagem que pula para 1 em cada 10 homens no território que constituiu o que foi o Império Mongol (o qual abrange a China). Dá arrepio só de imaginar as barbaridades que fizeram esse cromossomo Y se espalhar desse jeito.
As criaturas de A Grande Muralha não têm grande interesse em, digamos, deixar descendência entre os povos invadidos. O negócio delas é mastigar chineses valorosos e regurgitar a soldadesca já meio digerida dentro da boca da sua rainha, que, assim bem alimentada, vai gerar mais monstros. Na verdade, eles nasceram em um ateliê de computação gráfica americano chamado Profile Studios, cujo slogan (fui espiar a página deles) é “fazendo da produção virtual uma realidade”. Parece lema de companhia de seguros. E a qualidade da animação, também. Matt Damon e seu parceiro, interpretado pelo Pedro Pascal de Narcos e Game of Thrones, estão mais perdidos que cantonês em terra de mandarim: é de dar dó a cara de “salve-me” que eles fazem no papel de dois mercenários que buscam o milagroso “pó negro” (pólvora) chinês e, uma vez capturados, redescobrem o valor da lealdade e lideram a vitória do exército chinês contra as invasões que acontecem pontualmente a cada sessenta anos.
Não é que Zhang Yimou não saiba coreografar ação, porque sabe e muito bem. Do final dos anos 80 até meados dos 90, Yimou foi o maior expoente da chamada “quinta geração” de cineastas chineses, e nos anos 2000 provou do sucesso de bilheteria com Herói e O Clã das Adagas Voadoras. Aqui ele trabalha para uma plateia cativa (sem trocadilho). Tem muita cena de bravura, uma heroína casta (Tian Jing), um conselheiro sábio (o grande Andy Lau) e um estrangeiro mal-intencionado (Willem Dafoe). Os diálogos são reduzidos a uma simplicidade franciscana, e o exército chinês, que graça, é colour-coded – preto para a infantaria, azulão para as meninas do bungee jumping (não, não vou explicar), roxo para o batalhão tal, amarelo para o outro. Uma verdadeira Sapucaí. Mas o samba é atravessado. Nada contra parcerias sino-americanas feitas de olho no mercado chinês. O que não quer dizer que espectadores de economia em recessão precisem doar o dinheirinho do seu ingresso às duas economias mais fortes do mundo.
Já A Lei da Noite, que o amigão de Damon, Ben Affleck, roteiriza, dirige e estrela, não tem nem o humor involuntário de A Grande Muralha. Sabe quando você põe maisena demais no mingau e ele fica duro e com aquele sabor encruado? Foi nisso que esta adaptação de um romance de Dennis Lehane me fez pensar. Affleck estreou na direção, em 2007, com uma ótima adaptação do seu conterrâneo Lehane (os dois são de Boston) – Medo da Verdade, protagonizado pelo irmão caçula e ator consideravelmente mais talentoso Casey Affleck. Não li o romance A Lei da Noite, então não saberia dizer se os problemas do filme começam com o material original. Mas por onde eles continuam, isso eu digo já.
Problema número 1: história chocha, aquele clichê cansado do bandido pé-de-chinelo que se apaixona pela namorada do chefão gângster e tem de fugir – indo parar então, que sorte, em um lugar (a Flórida dos anos 1920, no caso) onde suas oportunidades de progredir no crime e fazer fortuna são ilimitadas. Vinganças de parte a parte se seguirão. Bocejo. Número 2: produção enamorada demais da ambientação de época. Essa é uma armadilha comum – fazer tudo tão perfeito, tão de acordo com o ano exato em que a trama se passa, que os cenários, figurinos e objetos de cena ficam falsos e artificiais. Os carros vieram tinindo da garagem da empresa de aluguel especializado. Os ternos de Ben Affleck, as tiaras melindrosas de Sienna Miller, os vestidos de Zoe Saldana, tudo parece entregue pelo alfaiate naquela manhã; tem cara de paramentação, não de que algo que se usa.
Os problemas de número 3 & 4 estão ligados: não é que A Lei da Noite seja propriamente ruim; mas é terminalmente morno. Até aqui, nos dois filmes em que combinara direção e atuação, Ben Affleck restringira seu tempo em cena. Montou um elenco de conjunto para o ótimo Atração Perigosa, e foi coadjuvante no muito bom Argo. Carregar o personagem central e dirigir algo em que ele nunca se aventurara antes – um filme de época – não deu certo. Principalmente, Affleck parece não ter conseguido dirigir a si mesmo nessas circunstâncias. Fez um Batman tão decente, e aqui está nos seus piores momentos como ator: duro, sem expressão (ou com a expressão errada) e sem química com as parceiras. Acredito que ele teria colocado muito mais sangue na direção se tivesse escalado outro protagonista. Por exemplo, Casey Affleck ou Matt Damon. Pena que Casey estava ocupado estraçalhando em Manchester à Beira-Mar – e Damon, pagando mico na Muralha da China.
Trailer
A GRANDE MURALHA (The Great Wall) China/Estados Unidos, 2017 Direção: Zhang Yimou Com Matt Damon, Pedro Pascal, Tian Jing, Andy Lau, Willem Dafoe, Hanyu Zhang Distribuição: Universal |
A LEI DA NOITE (Live by Night) Estados Unidos, 2016 Direção: Ben Affleck Com Ben Affleck, Zoe Saldana, Chris Cooper, Elle Fanning, Sienna Miller, Brendan Gleeson, Robert Glenister Distribuição: Warner |