Quando o menino vê, no corredor, o homem alto e magro cujos pés não tocam o chão – confesso que nessa hora afundei um pouco no sofá de pavor: que imagem horrível e tão divorciada do que é natural. Desde o início, com suas câmeras fluidas, que acompanham sem descanso os Crain – pai, mãe e cinco filhos –, A Maldição da Residência Hill se impõe como uma série de terror muito acima da média e, em certos aspectos, inovadora nesse meio: decisão rara no cinema e quase inédita na TV, a narrativa se sustenta não no que entrega, mas no que nega ao espectador. O ritmo é deliberado (o que não significa lento). Quase nunca se mostra aquilo que os personagens estão vendo, só as reações de perplexidade, apreensão ou pavor deles (o que põe a imaginação para trabalhar que é uma coisa). Quando se mostra algo, é porque vale a pena: é de arrepiar. E, sempre que se está para chegar a um clímax, este é suprimido na hora H por um corte que leva a outro período da história ou a outro lugar. Só não digo que Residência Hill passa perto de ser uma série de terror perfeita por causa dos seus dois últimos episódios – mas daqui a pouco entramos nesse assunto (sem spoilers, claro).
A história, baseada no sensacional livro de 1959 da escritora americana Shirley Jackson (no original, The Haunting of Hill House, como a série), já foi várias vezes filmada, com abordagens diversas. É um primor de simplicidade: um grupo de pessoas, entre as quais um estudioso de fenômenos ocultos, decide passar alguns dias numa casa que tem a reputação de ser assombrada. O aspecto mais interessante do enredo de Shirley Jackson, e o que responde pela sua solidez e durabilidade, é que se instaura um clima em que tanto a casa influencia seus hóspedes, quanto eles parecem influenciá-la. Shirley Jackson dizia que não faz sentido escrever uma história de fantasmas se não se acredita neles, mas cuidou muito bem de abarcar a dimensão psicológica contida no sobrenatural. Dito de outra forma, na mansão Hill os fantasmas espectrais encontram outros fantasmas – os metafóricos, que vivem no íntimo dos personagens –, e a coisa toda se multiplica exponencialmente.
Mike Flanagan, o criador da série da Netflix, leu com atenção o livro de Jackson. Provavelmente assistiu várias vezes também a Desafio do Além, minha versão preferida do livro até aqui, que o grande Robert Wise filmou em preto e branco, em 1963, com Julie Harris e Claire Bloom. Pode não ter nada a ver, ou talvez tenha, mas Flanagan nasceu em Salem, Massachusetts, onde em 1692 ocorreu o mais bem documentado episódio de histeria coletiva de que se tem notícia – o julgamento das supostas bruxas de Salem, que terminou com a execução de quatorze mulheres, cinco homens e dois cães (!!!!) por possessão e conluio com o demônio. Salem cultiva com muito zelo a sua lenda, e não me parece improvável que Flanagan estivesse assim particularmente preparado para responder a essa faceta de Residência Hill, a do poder de contágio do medo.
De forma que, quando Hugh e Olivia Crain (Henry Thomas e Carla Gugino) se mudam com os filhos para a mansão Hill (transferida, nesta versão, da Califórnia justamente para Massachusetts) para reformá-la e vendê-la, todos, individualmente, começam a ser afetados pela atmosfera estranha da casa. Alguns percebem que isso está acontecendo (o casal caçula de gêmeos e a mãe), outros não. O pai e o filho mais velho têm explicações racionais para tudo – até o momento em que, não, não as têm mais. Quanto, porém, há de autosugestão entre os Crain, e qual a parcela real de sobrenatural? Durante os oito primeiros episódios, Flanagan e seus roteiristas e diretores exploram magistralmente essa fronteira, valendo-se de um dos mais bonitos e intrincados sets construídos para um terror, de uma cinematografia criativa e tecnicamente impecável e de dois elencos cativantes – os Crain do passado e os do presente.
Eis aí outro lance acertadíssimo da série: Flanagan jogou fora o estudioso do oculto (o filho mais velho é que vai assumir esse papel na vida adulta) e transformou o grupo de personagens numa família para melhor dissecar os efeitos da mansão Hill sobre eles ao longo da vida. O impacto é terrível. Depressão, drogas, dissimulação, frieza, distância – cada um dos filhos, tão promissores na infância, cresce com alguma limitação sufocante. O bonito é como Flanagan costura o presente e o passado, com cortes secos que saltam sem transição entre as diferentes épocas e, efetivamente, transformam a trama num arranjo de espirais que correm umas dentro das outras e às vezes se intersectam. O sexto episódio já entrou na categoria de antológico. É todo feito em longos e hipnóticos planos sem cortes, que às vezes desembocam em tempos ou locais inesperados.
Por isso para mim, pessoalmente, os episódios 9 e 10, que compõem o epílogo, foram de certa forma uma decepção. Temas que haviam sido introduzidos na série com muita elegância foram abandonados, o dinamismo da direção falhou, as dúvidas que haviam deixado tudo tão torturante até ali foram trocadas por algumas certezas não muito criativas. Tudo em nome da “resolução” – aquela mania de amarrar todas as pontas soltas para que o espectador termine a maratona tranquilinho, sem qualquer incerteza ou angústia. Mas, no caso de A Maldição da Residência Hill, essa é uma pequena concessão que a virtude fez ao vício.