No colégio da pequena cidade de Sligo, na Irlanda, a maneira como os dois melhores alunos do último ano são conhecidos está já há muito tempo sacramentada: Marianne (Daisy Edgar-Jones) é a garota inteligente, esnobe e difícil, sempre com uma resposta sarcástica na ponta da língua, de quem os colegas mantêm distância; Connell (Paul Mescal) é o garoto doce e amigável, que se dá bem com todos e brilha no time de futebol. Quando alguém fala com Marianne, em geral é para agredi-la ou humilhá-la e receber como troco a verve ferina dela. Connell é o único que às vezes conversa com Marianne, e também o único a quem ela dirige alguma gentileza. O motivo dessa distinção já foi comunicado ao espectador em sinais sutis mas inequívocos — um olhar, uma virada de cabeça, uma postura mais atenta quando eles passam um pelo outro nos corredores da escola: Marianne é completamente apaixonada por Connell, e a curiosidade de Connell por ela está a um passo de se transformar em paixão também. O reconhecimento mútuo vai se concretizar em uma cena de sexo tão longa e franca quanto inebriante; poucas vezes alguém materializou na tela de forma tão palpável essa vertigem de um primeiro momento de intimidade em que os parceiros, protegidos um no outro, se sentem livres para mostrarem-se como são (ela, muito mais vulnerável e apegada do que se imagina; ele, bem mais reticente e manipulador do que aparenta). Na maioria dos romances, esse seria o momento da culminação e de um hipotético “felizes para sempre”. Mas não em Normal People (Irlanda, 2020), já disponível na íntegra na plataforma Starzplay. Na minissérie, produzida pelo Hulu, que virou a mania deste ano na Inglaterra e nos Estados Unidos, agora é que vem a parte difícil: o percurso acidentado que Connell e Marianne vão percorrer — às vezes juntos, outras vezes separados, mas sempre na órbita um do outro.
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Quando a ficção britânica envolve romance, este costuma vir cercado de muitos outros temas e considerações, e também de uma franqueza infrequente nas séries americanas. Na tradição que remonta a Orgulho e Preconceito (1813), de Jane Austen, e a Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë, e que hoje evolui em rumos revigorantes com séries como Fleabag (veja o quadro abaixo), as desventuras amorosas são um centro apenas hipotético — ou, dito em outras palavras, são o gatilho para que os protagonistas se confrontem consigo mesmos e adquiram alguma clareza sobre o papel que desempenham na própria infelicidade ou insatisfação. Normal People, adaptado do romance homônimo pela própria autora, a irlandesa Sally Rooney, hoje com 29 anos, segue a norma em linhas gerais, e foge a ela em outros aspectos relevantes. Por exemplo, a função dominante e muito eloquente que o sexo adquire na encenação (sempre há quem tenha a pachorra de tabular essas coisas, e chegou-se a um total de 43 minutos de cenas bastante explícitas em doze episódios de trinta minutos ou menos).
Outra divergência da regra é que Marianne, a impopular, é rica; Connell é filho da faxineira que trabalha em sua casa. Mas nem a questão de classe entra de forma simples na história. Não só os dois irão para a mesma universidade, o respeitadíssimo Trinity College de Dublin, como, na altura da vida em que estão, há moedas de troca mais fortes que o dinheiro — por exemplo, a aceitação dos pares e a segurança familiar. Uma pária na escola e sempre ignorada, quando não hostilizada, pela mãe e pelo irmão, Marianne é pobre nessas moedas. Connell é amado (e bem-educado) pela mãe, e é o menino de ouro do colégio. É ele, portanto, quem dita as regras do relacionamento, exercendo um poder que, pela convenção, caberia a ela: insiste no segredo, ignora Marianne em público enquanto se derrete por ela quando estão a sós, vai e volta nas suas decisões.
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Marianne se sujeita, como se sujeitará a muitas coisas mais nos quatro anos abrangidos pelo enredo, mesmo após desabrochar como a diva sofisticada e questionadora da universidade. Em um episódio particularmente duro, ela experimenta uma relação masoquista que tecnicamente é consensual, mas tem um forte quê de autopunição. “Você não presta, você não é nada”, diz o amante, cumprindo seu papel no jogo sexual — e Marianne ouve o que ele diz como se essa fosse a verdade, e ela merecesse ouvi-la. Enquanto isso, a despeito de suas conquistas acadêmicas, Connell se apaga no cenário social da faculdade. Não é querido em Dublin como o era no ambiente insular de Sligo, e sente que sua identidade se está esvaindo, em um processo que progride para uma depressão profunda a partir de um incidente com um amigo dos velhos tempos.
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Há algo de exasperador nas idas e vindas de Marianne e Connell, mas também de enternecedor. Não resta dúvida — nem para eles mesmos — de que foram feitos um para o outro. Mas é em outro alvo que Sally Rooney e os diretores Lenny Abrahamson (de O Quarto de Jack e Frank) e Hettie Macdonald (de séries como Howards End e Fortitude) miram: o fato de que se amor, paixão e afinidade são indispensáveis, eles ainda assim são insuficientes. Para que possam vir a talvez se completar, Marianne e Connell precisam antes descobrir quem são — precisam, enfim, se desvencilhar das pessoas em que a adolescência os moldou, e construir a pessoa que cada um deles quer ser. Embriagadoramente romântica, Normal People é, ao fim e ao cabo, o antirromance.
Paixão à moda das ilhas
Nas séries britânicas, um bom romance vem sempre acompanhado de porções generosas de constrangimento, frustração e comédia
Coupling (2000-2004)
Inspirada em Friends — mas muito mais atrevida —, a série mostra as várias permutações românticas que se formam em um grupo de seis amigos e amigas. Em vez de um café no Central Park, o ponto de encontro é, claro, o pub da vizinhança
Lovesick (2014-2018)
Ao receber o diagnóstico de uma doença sexualmente transmissível, Dylan (Johnny Flynn) procura, uma a uma, todas as namoradas e ficantes com que esteve nos últimos anos, para notificá-las — o pretexto para rever as causas de seus fracassos amorosos
Catastrophe (2015-2019)
Já entrando nos 40, um americano e uma irlandesa (Rob Delaney e Sharon Horgan) têm uma semana de sexo louco em Londres e, quando ela se descobre grávida, surpreendem-se com a decisão mútua de embarcar às escuras no casamento e na vida doméstica
Fleabag (2016-2019)
Com o coração partido bem escondido atrás do jeito inconsequente e egoísta, a protagonista (Phoebe Waller-Bridge) pela primeira vez na vida se apaixona para valer, mas tem de disputar o amor do Padre (Andrew Scott) com um rival de peso — ninguém menos que Deus
After Life (2019-2020)
Infelicíssimo com a perda da mulher, Tony (Ricky Gervais) cumpre o luto sendo o mais desagradável possível com quem quer que seja. A tática, porém, não funciona com a enfermeira de seu pai, e inicia-se aí uma negociação sobre retomar — ou não — a vida
Publicado em VEJA de 22 de julho de 2020, edição nº 2696
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