“Aniquilação”: ficção com Natalie Portman “viaja” no rumo errado
Produtor não gostou do trabalho de Alex Garland, diretor de “Ex Machina”, e filme foi direto para o streaming
Há cerca de trinta anos, alguma coisa se instalou num trecho do litoral americano e começou a mudá-lo de forma nem sempre visível, mas ainda assim drástica. Dezenas de expedições foram mandadas para além da barreira translúcida que isola (ou contém?) a chamada Área X. Elas passam por coisas horríveis (que coisas? difícil dizer), e algumas voltam loucas, outras não voltam. Da última vez, os integrantes retornaram todos calmos, passivos – como se fossem clones esvaziados – e morrendo de câncer. Agora, a mulher de um desses participantes, a Bióloga, está na Área X com uma nova expedição, formada por mais quatro mulheres, entre as quais a Psicóloga, e sente que está mudando por dentro desde que entrou num túnel que parece ser um dos epicentros da transformação do lugar. Aniquilação, o primeiro livro de uma trilogia do escritor americano Jeff VanderMeer, já é em si altamente viajandão – tão abstrato que exige um investimento decisivo por parte do leitor para, junto com a protagonista, ir reunindo os fragmentos de informação. Mas Aniquilação, a que se seguem Autoridade e Aceitação (todos publicados aqui pela editora Intrínseca) é também uma especulação provocativa e instigante sobre o temor da assimilação biológica, da mutação e da perda de controle sobre a nossa própria genética e a do ambiente. Com frequência, aliás, a trilogia deságua no terror. Em qualquer caso, seria uma pedreira vertê-lo para o cinema. Mas Alex Garland, o diretor do também ele muito provocativo e instigante Ex Machina, não faz nenhum favor a Aniquilação, disponível na Netflix, com a sua pegada: consta que o inglês Garland decidiu não reler o livro para fazer o roteiro, e preferiu escrevê-lo como se fosse uma sensação do livro – seja lá o que isso quer dizer. Fez impressionismo em cima do impressionismo. E perdeu-se quase por completo.
A migração do papel para a imagem sempre exige um sem-número de adaptações, e algumas das que Garland fez são perfeitamente compreensíveis: deixar a trama mais linear, reduzir o tempo de história da Área X de trinta para três anos, simplificar a andança da expedição pelo lugar e as coisas que ela encontra. Reluto bastante em aceitar que ele tenha dado nome aos personagens: no livro, eles não os usam porque a Área X absorve, digere e regurgita todo tipo de informação; quanto menos ela souber sobre quem caminha nela, melhor. E não compreendo por que, da fantasia de VanderMeer, ele tenha resolvido usar apenas alguns elementos para construir sua própria fantasia, com muito menos êxito e muito menos rumo do que o autor. Garland acertou muito em Ex Machina, mas aqui erra na mesma proporção. A direção de atores, desta vez, é um desastre. Natalie Portman não tem personalidade reconhecível como a bióloga. Jenniffer Jason Leigh, como a psicóloga, é um amontoado de tiques e azedume. Tessa Thompson, que foi a ótima Valquíria de Thor: Ragnarok, aqui parece a aluna tímida do colégio, e Oscar Isaac, Gina Rodriguez (Jane, a Virgem) e Tuva Novotny (Nobel) nem conseguem causar alguma impressão. O visual é interessante desde que não olhado com muita atenção – caso em que os efeitos revelam todas as suas deficiências. E os diálogos são péssimos (eles mal existem no livro e aí, sim, a inventividade de Garland teria vindo muito a calhar). E nunca, em momento nenhum, Garland consegue transferir para a tela aquela sensação de mal-estar e de horror que VanderMeer evoca no livro, e que o próprio Garland conjurou de maneira sensacional no seu roteiro de Extermínio.
O saldo da abordagem sei-lá-mil-coisas de Alex Garland foi uma tremenda briga entre os produtores. David Ellison, herdeiro do Larry Ellison da Oracle e um dos financiadores junto ao estúdio Paramount, detestou o resultado e exigiu mudanças. Já o produtor Scott Rudin tomou o partido de Garland e autorizou a versão do diretor. Por si só, isso não revela muita coisa: David Ellison já produziu tanta coisa bacana (Além da Escuridão: Star Trek, os dois últimos Missão: Impossível, Guerra Mundial Z) quanto coisas péssimas (Baywatch, Tempestade: Planeta em Fúria). Scott Rudin tem um currículo muito mais ilustre, com títulos como Sangue Negro, Onde os Fracos Não Têm Vez, A Rainha, A Rede Social – a lista cinco estrelas dele vai longe. Mas, no caso de Aniquilação, me parece que Ellison é que estava com a razão (pelo menos em não gostar; se as sugestões dele resolveriam algo ou não é impossível saber). No racha, optou-se por abrir Aniquilação somente em algumas salas dos Estados Unidos e da China, e distribuí-lo diretamente na Netflix no restante do mundo. Há um mês, aconteceu a mesma coisa – ou até pior – com O Paradoxo Cloverfield: também produzido pela Paramount, em conjunto com J.J. Abrams, o filme desagradou de tal maneira ao estúdio que nem chegou a ser distribuído em alguns cinemas. Foi direto para o streaming no mundo todo. Em casa, com a assinatura mensal já paga, certos pecados ficam bem mais fáceis de perdoar do que quando se tira do bolso o dinheiro do ingresso.
Trailer
ANIQUILAÇÃO (Annihilation) Estados Unidos, 2018 Direção: Alex Garland Com Natalie Portman, Jennifer Jason Leigh, Oscar Isaac, Gina Rodriguez, Tessa Thompson, Benedict Wong, Tuva Novotny |