Na reconstituição do Castelo de Sandringham feita para Spencer (Inglaterra/Alemanha/Estados Unidos/Chile, 2021), em todas as áreas de serviço veem-se alertas para que os empregados mantenham silêncio: ali tudo se ouve. O Sandringham do diretor chileno Pablo Larraín é um microcosmo e uma metáfora; havia anos, na Inglaterra e no mundo, ouviam-se todos os rumores, em crescendo, da família real britânica — de refrega conjugal entre Charles e Diana, das traições de parte a parte, do cansaço da rainha com a nora volátil e popular demais. Em dezembro de 1992, viria o anúncio formal da separação. Mas, bem antes disso, os boatos de ruptura já fervilhavam, alimentados pela frieza do marido e pela expressão infeliz da esposa — por exemplo, em uma cena marcante, que muito atiçou as especulações, de Charles e Diana afastando-se como se nem conhecessem um ao outro à saída da missa de Natal de 1991.
Diana: Sua verdadeira história
A cena está em Spencer, que estreia nos cinemas na quinta 27. Mas o filme não é uma recriação de fatos verídicos: como Larraín avisa nos dizeres iniciais, trata-se de “uma fábula tirada de uma tragédia real”. E é em tom de fábula — ou talvez de conto de casa assombrada — que transcorrem esses três dias do Natal de 1991 retratados pelo diretor. Antes até de entrar pela porta, Diana (Kristen Stewart) é motivo de irritação: onde está, por que não deu notícias? Vai se comportar ou criar caso?
Enquanto parentes reais e funcionários se armam para o comportamento errático de Diana, ela adia o inevitável. Dirige sozinha, perde-se nas estradinhas, embevece os fregueses de um posto de gasolina no qual pede informações, faz uma parada para observar a agora dilapidada Park House, onde nasceu e viveu até os 14 anos e em cujo campo resiste ainda, de pé, o espantalho vestido com uma velha jaqueta de seu pai, a qual, em um impulso, ela decide resgatar (trata-se de uma alegoria de um passado que ela sente ter sido destruído pelo seu presente: Park House não é mais dos Spencer, mas está preservada). Sem lembrar o trajeto para Sandringham, pede ajuda a Darren (Sean Harris), o chefe dos cozinheiros, que vai buscá-la. Na chegada, esquiva-se do ajudante de ordens da rainha, o major Alistair (Timothy Spall), que insiste em pesá-la para garantir que ela sairá de lá, ao fim do Natal, com pelo menos 1,5 quilo a mais — um ritual instituído pelo rei Eduardo VII no início dos anos 1900 e um pesadelo para quem, como Diana, lutava com a bulimia.
É a primeira de uma série de fugas protagonizada por essa Diana: durante todo o filme, ela se esgueira, esconde-se, escapa e se atrasa, vaga pelos corredores de Sandringham ou caminha no escuro rumo a Park House, onde as tábuas do piso apodreceram e o fantasma de uma rainha de fim trágico, Ana Bolena (Amy Manson), a espera. Henrique VIII decapitou Bolena, sua segunda esposa, para abrir caminho para a terceira, e este é o destino que Diana antevê: o de ser descartada, por quaisquer que sejam os meios, para que os Windsor se vejam livres do estorvo que ela representa e também para que o caminho se abra para Charles e Camilla Parker Bowles. No desempenho altamente estilizado, e notável, de Kristen Stewart (que tem chances saudáveis de ser indicada ao Oscar), Diana já está se tornando meio imaterial, quase ela própria um fantasma, assombrado não só por Bolena, mas por uma família real cuja rigidez dá a essas pessoas um certo aspecto de mortos-vivos.
Diana. O Ultimo Amor de Uma Princesa
Nem seria preciso dizer que, da mesma maneira que em Jackie (2016), Larraín adota integralmente o ponto de vista de Diana, numa espécie de materialização da versão que ela deu aos fatos. Desde a balança antiquada em que o mordomo quer pesá-la, tudo em Sandringham conspira contra quem ela é: os horários intransigentes, o sem-número de rituais, os trajes designados de antemão, a vigilância opressiva dos que estão a serviço da rainha — como o major Alistair — e as confidências apressadas, sempre insuficientes, com aliados como a guarda-roupeira Maggie (Sally Hawkins). Para a família real, também, Diana é tão próxima do invisível que poderia nem estar lá. Larraín reserva para ela um rápido diálogo com a rainha e duas trocas breves mas intensamente humilhantes com Charles (Jack Farthing); ela existe de fato só para os filhos e para a criadagem — o lembrete de Larraín de que, casada aos 20 anos, inexperiente, fragilizada pelo abandono da mãe na infância e com a cabeça cheia de sonhos, Diana atravessou um conto de fadas ao contrário, de início auspicioso e um interminável final infeliz, durante o qual capitalizou seu carisma e desamparo para angariar níveis inéditos de devoção popular — a qual, na ocasião da sua morte, em 1997, voltou-se com ferocidade contra Elizabeth II, causando a maior crise institucional de seu reinado. Daí o filme se chamar “Spencer”, o sobrenome antiquíssimo de Diana. No roteiro excelente (mas não para todos os gostos) de Larraín, não há histórias de príncipes e princesas. As únicas histórias verdadeiras — mesmo quando têm de ser imaginadas — são as de forças poderosas em oposição.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773
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