Em Três Verões, Regina Casé é vítima acidental de escândalo bem nacional
Com naturalidade cativante, a atriz encarna no filme uma personagem típica da crônica do Brasil — a caseira que se vê no centro de um alvoroço
Enquanto Madá (Regina Casé) ajuda o velho Lira (Rogério Fróes) a caminhar pela praia, seu patrão pede seu celular emprestado. “Mas é pré-pago!”, desespera-se ela, pensando nos créditos preciosos que Edgar (Otávio Müller) vai queimar. Se Madá não estivesse tão ocupada com Lira, não seriam os créditos a alarmá-la, mas sim o fato de que o dono da mansão de veraneio guardou o próprio telefone no bolso e preferiu sussurrar sua conversa ao aparelho mixuruca da caseira. Madá, porém, está ocupadíssima, com Lira e com tudo o mais: é véspera de Natal de 2015, e ela como sempre capitaneia a brigada de empregados que vai atender os convidados no feriado. Edgar parece perturbado, mas ainda assim Madá acha uma brecha para pedir a ele um pequeno empréstimo para montar um quiosque na rodovia, em torno do qual ela tece fantasias de prosperidade. Ele topa — mas exige em troca o celular dela. No Natal do ano seguinte, com os preparativos em marcha, os empregados recebem a notícia de que não haverá mais festa; os patrões partiram em viagem repentina para o exterior. Madá nem teve tempo de pensar no que fazer com as encomendas e a Polícia Federal já está em peso à porta. Madá descobre que está implicada até o pescoço: o patrão carimbou seu CPF em tudo quanto é negociata.
A crônica político-policial brasileira é populosa em caseiros, porteiros, secretárias e motoristas que, tomados como invisíveis por seus empregadores, viram testemunhas-chave em investigações de corrupção, até sumirem de novo do noticiário — frequentemente, depois de terem sido achacados ou tratados também eles como suspeitos. É pelo lado deles que, em Três Verões (Brasil, 2020), já em exibição em drive-ins, no Telecine e para aluguel em plataformas de streaming, a diretora Sandra Kogut aborda a rotina de escândalos do país. Ela não poderia ter escolhido rosto mais cativante para simbolizar esses personagens ignorados que o de Regina Casé: capaz de exprimir ao mesmo tempo vivacidade e têmpera, alegria e desolação, a atriz habita com naturalidade incomparável a pele dessas mulheres que batalham e seguem em frente. Confrontada com a própria decepção e com o pânico na cara dos colegas que, como ela, vão ficar sem os atrasados, Madá se vira: com a casa sob sua custódia, aluga-a a hóspedes, organiza passeios de barco nos quais mostra aos turistas as mansões dos corruptos foragidos, usa o espaço como locação de comerciais.
No meio de toda essa atividade, é com Lira, o pai largado para trás e repugnado com o que o filho se tornou (menção talvez mais do que casual a um ex-governador hoje preso), que ela forja seu vínculo mais forte. O pai e a caseira representam, por procuração, todos os contingentes de cidadãos cuja vida desmorona, vez após vez, sob ação de um outro contingente, este de predadores extraordinariamente tenazes. Rápido e bem-humorado mesmo quando é tocante, Três Verões acerta na mosca na cena em que, por intermédio do advogado, Edgar pede aos empregados deixados sem salário que tenham “compreensão” para com seu “momento difícil”: no entender da saúva, é ela a vítima, não a árvore que ela roeu.
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703