Apitos, assobios, chicotes, batidas de violão e coros de “uhs” e “ahs” que às vezes se resolviam em passagens melódicas, e outras tantas vezes conduziam a sons que, por virem entremeados de silêncios, pareciam ainda mais inusuais: com sua imaginação assombrosa, Ennio Morricone inventou paisagens sonoras inexistentes até sua estreia no cinema, em 1960. Mas talvez Morricone, morto no último dia 6 de julho, aos 91 anos, não tivesse ganhado tanta latitude para exercer sua originalidade se, em algum momento de 1964, uma conjunção cósmica qualquer não tivesse alinhado sua estrela com a do amigo de escola Sergio Leone e a do astro americano de seriados Clint Eastwood em Por um Punhado de Dólares: seria impossível separar a genialidade cênica de Leone, com os ultra close-ups dos quais cortava para formidáveis planos abertíssimos de geometria intrincada, da trilha espantosa e excitante de Morricone ou da atuação lacônica e icônica de Eastwood. Assim foi inventado faroeste-spaghetti, nos quais todos esses elementos (mais o humor sardônico e as locações na desértica Almería espanhola) são igualmente essenciais e colaborativos entre si. Assistir a um dos títulos da trilogia completada por Por uns Dólares a Mais (do qual o New Order “roubou” a linha de baixo de Blue Monday) e Três Homens em Conflito é também ouvir o que ia pela cabeça de Morricone e o que passava pelos olhos semicerrados de Eastwood; é sentir a poeira do deserto secar a garganta e entrar na pele, cegar-se com a luz do sol e se ver no meio de um triplo duelo de desfecho imprevisível. Todos os três filmes estão disponíveis no NOW e no Looke. Mas nenhuma viagem pelas trilhas de Morricone estaria completa sem estas paradas:
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Clique e Assine1. Era Uma Vez no Oeste (1968)
Onde: acabado de chegar na Netflix, e também no Looke e no NOW
Na estação de trem no meio da pradaria poeirenta – pouco mais que um barracão –, três malfeitores (está na cara que é isso que eles são) matam tempo enquanto aguardam a chegada do trem. Só se ouvem o barulho do vento, o piar de um passarinho, as pás de um moinho rangendo, os passos dos homens nas tábuas, o tac-tac-tac de um telégrafo, o gotejar da água, uma mosca zunindo – até que, aos 10 minutos, o trem entra em cena guinchando e arfando e, ao partir, deixa para trás o lamento de uma gaita, ao qual se juntam as cordas de um bandolim e, depois, tiros e de novo o silêncio. É um dos prólogos mais célebres já feitos. Mas, desde o primeiro até o último instante, Era Uma Vez no Oeste é cinema em estado puro e sublime, para o qual a trilha de Morricone, na maneira como realça e contrasta, e atiça a imaginação e as emoções, é contribuição indispensável. Certa vez, mostrei esses primeiro 15 minutos para um grupo de estudantes de disciplinas variadas (nenhum de cinema) que nunca haviam ouvido falar do filme, e foi uma felicidade ver como eles ficaram hipnotizados. Por eles, a palestra viraria sessão de cinema. Tive de cortar o barato, mas espero que alguns tenham continuado o programa em casa.
2. Os Intocáveis (1987)
Onde: NOW
No seu momento mais mágico, Brian De Palma dirige Sean Connery e Kevin Costner na história da caçada do FBI ao mafioso Al Capone – e consegue de Morricone uma trilha que define o que é perfeição. Para mim, é a parceria definitiva do compositor depois daquela que ele teve com Sergio Leone.
3. Era Uma Vez na América (1984)
Onde: Amazon Prime Video
Um dos temas mais famosos de Morricone e uma de suas orquestrações mais ricas embalam a história dos meninos filhos de imigrantes judeus que crescem para dominar – e disputar – a primazia do crime.
4. Cinema Paradiso (1988)
Onde: NOW
No clássico sentimental de Giuseppe Tornatore, um cineasta recorda a infância na cidadezinha italiana e a paixão pelo cinema que foi nascendo da amizade com o velho projecionista. É Morricone na sua veia mais melódica e caprichosa, que o aproxima de outro gênio das trilhas, o Nina Rota da parceria com Federico Fellini.
5. Os Oito Odiados (2015)
Onde: Amazon Prime Video
Quentin Tarantino é fã devotado de Sergio Leone e de Morricone, e conseguiu que o compositor, então já bastante idoso, fizesse esta trilha para ele às cegas: basicamente, a montagem é que se adequou ao som aqui.
6. Cão Branco (1982)
Onde: com muito garimpo, em DVD
Pode parecer maldade sugerir um título quase impossível de encontrar, mas vale a pena ver o filme brilhante de Samuel Fuller sobre um cão treinado para atacar negros, que a trilha também ela brilhante de Morricone pontua com uma restrição nem sempre comum nele.