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Isabela Boscov

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Globo de Ouro: de Hollywood, para Hollywood

Só Oprah pode trazer um pouquinho do mundo real para dentro da festa

Por Isabela Boscov Atualizado em 8 jan 2018, 19h33 - Publicado em 8 jan 2018, 19h10

Por tradição, para nós, a vestimenta preta simboliza a perda extraordinária de algo ou alguém amado, cuja ausência não pode ser preenchida. Desde o início, então, pessoalmente achei inapropriada a escolha do figurino preto para todos os homenageados e convidados do Globo de Ouro, em lembrete das incontáveis denúncias de abuso e assédio sexual que marcaram 2017. Não caberiam melhor o vermelho da indignação, ou o branco da paz e recomeço? O próprio slogan da festa ia nessa direção: “Time’s Up” (ou “Já Deu”, em uma tradução muito livre) – é hora de mudar, de fazer de outra forma, diferente e melhor. No geral, porém, a iniciativa foi saudada como um sucesso. Eu me pergunto se foi mesmo.

As atrizes, donas da festa, ainda mais carregadas de diamantes que o habitual – era preciso dar um realce no pretinho básico –, chegaram várias delas acompanhadas de ativistas: mulheres de todas as caminhadas da vida que trabalham no muque, dia a dia, contra o abuso e a discriminação em comunidades particularmente vulneráveis como empregados domésticos, famílias de baixa renda, refugiados. No tapete vermelho, seguras e articuladas, essas mulheres davam uma entrevista de uns tantos segundos a Ryan Seacrest. Em geral, esperançosas, falavam de como o apoio de uma celebridade pode amplificar a mensagem delas. E então seguiam, de braço dado com Emma Watson, ou Angelina Jolie, ou Meryl Streep, para o interior do salão. Onde passaram a noite sentadas à mesa, sem serem chamadas mais para nada. Ficaram quase que reduzidas a adereços. Quietinhas, ornamentaram o assento à direita ou à esquerda de pessoas famosas que, a cada discurso, congratulavam-se por… o quê? Não mais posar sorrindo ao lado de Harvey Weinstein, ano após ano? Não mais ter de fingir que não estão vendo o que está acontecendo? A atriz Rose McGowan, uma das primeiras a denunciar os abusos de Weinstein e uma das mais machucadas pela sanha vingativa do produtor, não quis ir à festa. Tuitou sobre a falsidade da ocasião e o uso do preto “em comemoração aos nossos estupros”.

Creio que Rose tem parcela de razão. Eu acharia o máximo, com cor de luto e tudo, se as atrizes presentes ao Globo de Ouro tivessem usado a oportunidade para amplificar a mensagem daquelas ativistas que as acompanharam, e que dedicam seu tempo e energia a apoiar mulheres que não conseguem ser ouvidas ou que têm o medo legítimo de, se falarem, perderem por isso o emprego que garante o teto e a comida da sua família. Mas, pouco a pouco, a festa foi virando uma comemoração de Hollywood, sobre Hollywood, para Hollywood. James Franco teve um gesto espontâneo que exemplifica esse jeito de ser. Franco ganhou o prêmio de melhor ator de comédia ou musical por Artista do Desastre, inspirado na história de Tommy Wiseau, autor de um filme excepcionalmente ruim e muito cult chamado The Room. Wiseau subiu ao palco com Franco, ganhou dele um abraço e então foi indo em direção ao microfone. Que Franco agarrou rapidinho, com um “nananinanão” para Wiseau. A história era de Wiseau, mas isso não quer dizer que ele tenha o direito à palavra, ora; sua função ali era figuração. É bem sabido que Hollywood é mesmo dada à egolatria, e que tem mil preocupações superficiais com que encher a cabeça. Mas há algo de sovina em ser capaz de eleger uma só causa a cada ano, como se todas as outras houvessem perdido a importância ou se resolvido. Na coleção deste ano, aliás, nem a tensão racial teve muito lugar na passarela, quanto mais a possibilidade real de um conflito nuclear, as tentativas de censurar a imprensa americana, o retrocesso nas políticas ambientais ou as deportações em massa.

Não fosse Oprah Winfrey exercitar a melhor tradição americana da oratória, e poderia ter-se a impressão de que todas as desigualdades estavam acabando ali, naquela noite. Em um discurso quase evangelizador, mas poderoso, Oprah lembrou certos fatos básicos do mundo real, o que existe fora da redoma de Hollywood – de como a pobreza e a baixa instrução são as aliadas constantes de todas as modalidades de discriminação e desigualdade, e de como é aí que se faz necessário começar a promover a igualdade de oportunidades. Oprah lembrou, ainda, que é praticando que se ensina e se inspira, e que o objetivo de qualquer campanha contra um vício social não é propagar a si mesma e servir de exaltação aos participantes, mas sim erradicar esse vício até tornar a campanha, um dia, desnecessária. São constatatações óbvias. Mas, ditas por Oprah com seu carisma excepcional e com o conhecimento de quem viveu aquilo de que fala, deixaram a plateia do Globo de Ouro com a expressão de enlevo e revelação de quem ouve o Sermão da Montanha. Hollywood, quando está na companhia de Hollywood, sempre precisa ser lembrada de que não é o mundo. Tão rapidamente como o percebe, porém, ela o esquece.

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