Se já é triste escrever a memória de um diretor querido, mas que nunca se conheceu pessoalmente, muito mais triste ainda é fazê-lo para alguém com quem tantas vezes o caminho da gente se cruzou. Tenho várias lembranças de Hector Babenco, mas uma delas é favorita: uns cinco ou seis anos atrás, participamos de um debate sobre crítica de cinema que já foi, em si, uma ocasião deliciosa. Findo o evento, ficamos todos os quatro debatedores – Babenco, Alcino Leite Neto, Ricardo Calil e eu – papeando, sem pressa, num corredor, dando risada e contando causos. Babenco, aliás, contou uns muito bons, mas do tipo que não se pode passar adiante. Estava feliz, descontraído, bem-humorado. Durante o debate, já tínhamos dado gargalhada quando eu o lembrei de um email, digamos, meio danado que ele me mandou a respeito da minha resenha não muito favorável de Carandiru: Babenco sabia que às vezes podia mesmo ser um cara temperamental.
Ainda bem que o era. Desde 1975, quando ele estreou com O Rei da Noite, mas sobretudo com Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia (1977) e Pixote (1980), ele fez o que ninguém estava fazendo: um retrato nu e cru de como somos e o que somos. Babenco vivia no Brasil desde os 19 anos e se naturalizou em 1977, mas nunca poderia (nem desejaria) cancelar o seu lado estrangeiro. Via com clareza, com desassombro, sem barreiras, e esse olhar era central para o seu trabalho. Mas o que o tornava maior é que esse olhar ia acompanhado de sentimentos genuínos – e fortes. Lúcio Flávio transpira ambivalência, Pixote transborda de indignação e tristeza. Babenco filmava, ainda, com uma fluência e uma riqueza muito sedutoras; é um daqueles casos felizes em que prestígio artístico e apelo ao público se somam.
Depois de sua bem-sucedida fase internacional – O Beijo da Mulher Aranha (1985), Ironweed (1987) e Brincando nos Campos do Senhor (1991) –, Babenco atravessou uma década dificílima, consumida na briga com um câncer linfático. Em 1996, teve de fazer um transplante de medula, felizmente com êxito. Era esperado que, depois dessa convivência tão próxima com a perspectiva da morte, seu cinema mudasse. À parte Carandiru (2003), outro sucesso de público, os filmes de Babenco ficaram introvertidos. Coração Iluminado (1998) e O Passado (2007) têm um traço de amargura, ou melancolia, que não estavam lá antes. Mas acho que esses sentimentos foram finalmente exorcizados por completo em seu último filme, Meu Amigo Hindu, lançado no ano passado, que se inspira de maneira bem autobiográfica na fase da sua luta com a doença. É um baque saber que Hector se foi de maneira tão repentina nesta quarta-feira dia 13, aos 70 anos. Eu esperava muito mais ainda.