É tudo aquilo que a terceira temporada de Black Mirror não conseguiu ser: sem que o espectador seja capaz de dizer o que, precisamente, está errado, ele sabe – ou sente – que algo não se encaixa nestes dois cenários. Em 2018, Heidi Bergman (Julia Roberts), toda empatia e ansiedade discreta em causar uma boa impressão, supervisiona uma nova instalação patrocinada pelo Departamento de Defesa americano e batizada de Homecoming (“de volta ao lar”), onde veteranos traumatizados receberão preparo psicológico e profissional para retomar a vida civil. O prédio imenso, todo envidraçado, é calmo e agradável e cheio de áreas de convivência; mas algo soa falso. De maneira abrupta, o quadro encolhe do formato esticado para um formato fechado, as cores perdem o viço, a música vira pouco mais que um pulso insistente: está-se em 2022, e a mesma Heidi decaiu consideravelmente em status. Ela é agora garçonete num diner sebento na costa da Flórida, onde velhinhas passam o dia dormindo diante de um prato de sopa, e onde o investigador do Departamento de Defesa Thomas Carrasco (Shea Wigham) vai procurá-la para apurar uma queixa feita quatro anos antes em nome do soldado Walter Cruz (Stephan James), que ela tratou no Homecoming. Heidi fecha a cara para Carrasco, tenta evadir-se, diz que não se lembra de Cruz nem de nenhum detalhe do seu trabalho lá. É óbvio que ela está escondendo algo. Carrasco, porém, não suspeita o quê: Heidi quer esconder que essa é a verdade – sabe que trabalhou no Homecoming, mas não se lembra de mais nada do que teria feito lá. Nada.
Criada pelos completos novatos Micah Bloomberg e Eli Horowitz e pelo Sam Esmail de Mr. Robot – que dirige todos os dez episódios desta primeira temporada –, e produzida e disponibilizada pela Amazon, Homecoming é um exemplo de como ater-se à simplicidade às vezes pode ser o caminho mais curto para a inovação. Os episódios têm cerca de 25 minutos cada um, apenas. Os cenários são poucos e comuns, e não há nenhuma tentativa de torná-los estranhos ou futurísticos, ou de acenar com novidades tecnológicas sinistras. Exatamente o contrário: o perturbador, em Homecoming, é a absoluta normalidade do que se está vendo em 2018 e em 2022 – e a inexplicável distância entre essas duas normalidades. Como em Mr. Robot, há aqui uma corporação com objetivos dúbios, representada por Colin Belfast (Bobby Cannavale), o chefe grosseirão e estridente que atormenta Heidi ao telefone todas as horas do dia. É evidente, também, que ele escolheu Heidi para chefiar o projeto não apesar de sua inexperiência, mas por causa dela.
À parte esse tema corporativo, porém, a soma dos dez capítulos funciona muito mais como um episódio de Black Mirror – comparável aos melhores de que a série inglesa foi capaz – do que como Mr. Robot, já que sua ênfase recai menos na conspiração e mais na estranheza. Para chegar ao máximo de resultado dentro desses critérios, o trio de criadores lapida obsessivamente os diálogos (soam simples, mas estão longe de sê-lo), calibra milimetricamente cada interpretação (Sissy Spacek, no papel da mãe de Heidi, também merece ser mencionada) e dissimula a imensa sofisticação dos enquadramentos e do uso da trilha: a ideia é que, assim como os soldados do Homecoming, você se sinta desconfortável sem saber por quê. Por inesperado que pareça, a peça fundamental em todo esse arranjo é, justamente, Julia Roberts, que fez toda uma popularíssima carreira do seu dom para ser uma atriz acessível, com que é fácil se relacionar – mas que, aqui, dá usos insuspeitos a esse atributo, com um apetite pelo trabalho e uma disposição para o desafio poucas vezes vistos numa ex-pretty woman (vale dizer, aliás, que ela continua muito bonita, e sem nenhum retoque cirúrgico facilmente detectável). É de longe o trabalho mais limpo e interessante de Julia, e uma contribuição indispensável para tornar esta uma das séries mais excitantes de 2018.