‘Identidade’ e o perigoso jogo de mulheres negras ‘disfarçadas’ de brancas
Na Manhattan dos anos 20, um caos íntimo mas voraz se instala quando duas amigas negras se reencontram — e uma faz a descoberta
Conforme a regência, o verbo to pass tem diferentes significados. Mas, no vocabulário americano, quando ele vem sozinho, designa (ou costumava designar) uma só coisa: que uma pessoa negra de pele mais clara ou traços mais caucasianos está passing, ou passando-se, por branca. É uma expressão perversa, que não só carrega a culpa da renúncia à própria identidade como implica que os brancos que inadvertidamente acolhiam entre si o “inimigo” eram as vítimas da fraude. Em Identidade (Passing, Inglaterra/Estados Unidos, 2021), a estreia na direção da atriz inglesa Rebecca Hall já disponível na Netflix, Rennie (Tessa Thompson) decide se passar por branca numa ida a Manhattan. Cheia de medo, a moradora do então próspero Harlem, casada com um médico e mãe de dois meninos, arrisca a farsa por algumas horas para ir às compras e tomar chá em um hotel de luxo. Lá, encontra uma velha amiga, Clare (Ruth Negga) — e descobre que Clare está há anos “passando”: tem agora a pele alva, cabelos loiros, roupas caríssimas e um marido, John (Alexander Skarsgard), que diz que não, os negros não lhe desagradam: ele os odeia mesmo. John, é claro, não percebe que Rennie é negra. E ignora que também sua mulher o é.
O encontro é como uma pedra jogada em um lago: a superfície antes calma irrompe em círculos que se expandem até distâncias imprevisíveis. Clare entra na vida de Rennie e lá decide ficar, brincando com a própria dissimulação e instaurando ao seu redor uma espécie íntima mas voraz de caos. Menos ambicioso que o romance A Marca Humana, de Philip Roth, o filme de Hall é, no entanto, mais específico e meticuloso, sempre atento aos gestos quase imperceptíveis do jogo entre os personagens — um jogo que Tessa, magistral, ganha de lavada.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764
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