Mel Gibson em Herança de Sangue
Do paraíso ao inferno: a via-crúcis de Mel não termina nunca
Herança de Sangue, um desses thrillers de vingança muito sujos e malvados, sobre um pai que arrebenta enquanto tenta salvar a filha das garras de um cartel, não é o filme em que eu queria ver Mel Gibson em 2016. Mas talvez seja o único tipo de filme que, por um bom tempo ainda, ele possa estrelar: fãs de divertimentos ultraviolentos e cínicos como este talvez estejam entre os poucos espectadores que olham para Mel e não pensam imediatamente nos episódios escabrosos com que ele pôs sua carreira a pique – ou pensam, mas não se importam tanto. A mim, porém, já começou a doer isso de vê-lo explorando em um papel no cinema as coisas feias que passaram a ser associadas à pessoa dele: a violência, a ira, o racismo, o alcoolismo. Não sei se eu deveria me sentir mal por ele se sujeitar a esses papeis (ou procurá-los, não sei); Mel só tem a si mesmo a culpar – e como tem a se culpar! – por as coisas terem chegado onde chegaram. Mas, sim, me sinto mal.
Antes de tudo isso, Mel era conhecido como um sujeito absolutamente especial: um astro que era também – ou sobretudo – um ator magnético, imprevisível, destemido, de talento feroz, e de personalidade cativante dentro e fora do set, capaz de conquistar amigos para a vida toda num ambiente em que isso não é regra, e que tratava todo e qualquer membro de sua equipe com a mesma consideração e o mesmo senso de humor brincalhão. Quando eu editava a revista SET, a colega Elaine Guerini foi visitar a filmagem de Coração Valente para fazer uma matéria para nós. Ficou encantada: Mel fez festa para ela o dia inteiro (só para esclarecer, isso está muito longe de ser comum). Também não dá para deixar de lembrar que ele era, além disso, lindo – em O Ano em que Vivemos em Perigo, por exemplo, ele é de uma beleza atordoante.
São dois os eventos mais conhecidos, e verdadeiramente deploráveis, da trajetória de Mel: em 2006, parado pela polícia por dirigir embriagado, ele embarcou numa medonha vituperação anti-semita (um dos policiais tinha sobrenome judeu) que, claro, viralizou. Como a coisa toda já veio na esteira do brutalíssimo e nitidamente anti-semita Paixão de Cristo, e foi seguida de muitas outras declarações infelizes, não dava para fingir que se tratava de um rompante isolado. Em 2010, o negócio azedou de vez: caiu na rede a gravação de uma longa conversa telefônica em que Mel atacava com insultos terríveis sua ex-namorada, Oksana Grigorieva – gravação que foi acompanhada por denúncias de agressões físicas (conta que até a filhinha do ex-casal teria sido acidentalmente atingida por um soco), e mais ofensas e processos de parte a parte. Preconceito e abuso doméstico são um coquetel venenoso, e a carreira de Mel se extinguiu instantaneamente sob efeito dele.
Mel Gibson é – ou pelo menos era – atormentado por demônios poderosos, em boa parte herdados do seu pai. Primeiro, um catolicismo de inclinação medieval (tanto ele como seu pai já atacaram o Concílio Vaticano II, de 1963, com o qual a Igreja católica se libertou oficialmente do anti-semitismo e também abandonou a ênfase no pecado e na fixação com o martírio de Cristo, preferindo sublinhar as lições éticas e espirituais da pregação de Jesus). Na esteira disso, vêm o machismo, a reprovação a toda e qualquer conduta que fuja desses padrões morais retrógrados (por exemplo, a homossexualidade) e uma tendência à cólera que, a certa altura, o abuso de álcool tirou de controle.
Com tudo isso, alguns dos amigos que Mel fez ao longo da vida permanecem absolutamente fiéis. Robert Downey Jr., que entende de segundas chances, já argumentou várias vezes que Mel nunca teve a dele, mas a merece. (Quando ninguém dava emprego a Downey, logo que ele saiu da prisão, Mel ofereceu de presente a ele o papel principal em Crimes de um Detetive, e pagou do próprio bolso o seguro para que ele pudesse atuar.) Jodie Foster sai em sua defesa em toda e qualquer ocasião, e em 2011, quando Mel era considerado figura tóxica no cinema americano, ela o dirigiu em Um Novo Despertar. (veja aqui a resenha porque tem tudo a ver com o assunto deste post.)
Também George Miller, o diretor de Mad Max e descobridor de Mel, perdeu o rebolado e ficou perto de chorar quando, numa entrevista coletiva no lançamento de Estrada da Fúria, um repórter atacou o ator; Miller tentou até o último momento manter Mel como protagonista de Estrada da Fúria, e só desistiu quando constatou que a presença dele seria o fim categórico de qualquer financiamento à produção. Mel atrai lealdades inflexíveis (e não lealdade de fanáticos, que não significaria muita coisa). Uma pessoa que é capaz disso não pode ser só errada; tem de haver algo de certo nela também, acho eu. No episódio das acusações de Oksana, a ex-mulher de Mel, Robyn, com quem ele foi casado por quase trinta anos e com quem teve sete filhos, fez questão de ir a público dizer que nunca houvera nem sombra de violência ou abuso no casamento deles.
Mas as pessoas mudam, e em dado momento, por algum motivo, o lado solar que se conhecia de Mel foi sobrepujado pelo seu lado pesado, mercuriano. Como o tormento, porém, não é um transtorno mental, fica difícil dar desconto às atitudes feias de Mel; nada indica que ele não estivesse de posse de suas faculdades quando as cometeu. Ainda assim, me parece que as pessoas que ele magoou, ofendeu ou agrediu, física ou verbalmente, não são o alvo verdadeiros dessas atitudes, mas sim o triste dano colateral produzido por Mel no cumprimento de sua missão real, que é autodestrutiva e autopunitiva. Posso estar completamente enganada, claro, mas a sensação que tenho ao ver filmes como Herança de Sangue é a de que ele está pondo nos pés trocados as sandálias da humildade – ou seja, assumindo tudo de pior que se espera dele na esperança de que isso sirva como ato de contrição. É um mea culpa torto, equivocado. Mas também pode ser simplesmente que ele queira ou precise trabalhar, e isso é o que resta. No ano passado, ele fez algo muito diferente: trabalhou como diretor de arte em um filme chinês de guerra, The Bombing, que deve ser lançado na China no final de setembro.
Mel está, também, tentando tomar as rédeas de uma guinada e fazer um retorno ao centro vivo da indústria de cinema. Alguns dias atrás, ele mostrou no Festival de Veneza seu primeiro filme como diretor em dez anos (desde Apocalypto, de 2006, cuja resenha você pode ler aqui). Hacksaw Ridge, que deve ser lançado no Brasil em janeiro, trata de Desmond Doss, soldado paramédico na Batalha de Okinawa, na II Guerra, que se recusou a pegar em armas e se tornou o primeiro (e, até onde eu saiba, o único) praticante da objeção de consciência a ganhar a Medalha de Honra, a mais alta honraria militar americana. A Variety descreveu as cenas de batalha como “um cataclismo de terror” dentro de um filme que é, no seu âmago, “um rito de renúncia”. Ou seja, Mel continua Mel, dividido no apelo que encontra na história de Doss – por um lado, a recusa da violência e um pedido público de perdão; por outro lado, a carnificina da guerra e as suas infinitas possibilidades de martírio. Os anjos e demônios de Mel continuam em guerra. Mas, pela primeira vez em muito tempo, os anjos talvez consigam, quem sabe, levar a melhor.
Trailer
HERANÇA DE SANGUE (Blood Father) Estados Unidos, 2016 Direção: Jean-François Richet Com Mel Gibson, Erin Moriarty, William H. Macy, Diego Luna, Michael Parks, Thomas Mann Distribuição: Califórnia |