A pior coisa que se pode fazer pelo soberbo Menina de Ouro (Million Dollar Baby, Estados Unidos, 2004) é contar qualquer coisa que se passe depois dos vinte ou trinta minutos iniciais de filme — nos quais a garçonete Maggie Fitzgerald, 32 anos de idade e dezenove servindo mesas, pobre e sozinha como um vira-lata, a ponto de matar a fome com os restos deixados no prato pelos fregueses, segue o instinto natural de sua estirpe para escolher um dono e se agarrar a ele. Todos os dias o ex-boxeador Frankie Dunn a enxota de seu ginásio decadente, e todos os dias Maggie volta para socar sacos de areia, à espera de que Frankie finalmente aceite prepará-la e transformá-la na grande lutadora que ela quer ser. Maggie acredita nisso com uma fé grande o bastante para cobrir as suas deficiências e o ceticismo de Frankie, um católico que vai à missa todos os dias para questionar o padre, ou, em outras palavras, para questionar Deus. Maggie e Frankie, magnificamente interpretados por Hilary Swank e Clint Eastwood (que assina também a direção, a produção e a trilha sonora), vivem assim os papéis cardeais de mestre e discípula numa história que, em seus contornos mais básicos, poderia parecer requentada — não falta a ela nem o amigo negro e sábio do treinador (Morgan Freeman, aliás excelente). Mas, nas duas horas seguintes, Eastwood vai conduzir o enredo e seus personagens por caminhos em que nenhum clichê cinematográfico jamais teve a bravura de se aventurar, e cujo destino é o encontro tardio, árduo e terrivelmente doloroso com a salvação, e salvação com “S” maiúsculo, ainda que decidida e deliberadamente contrária a qualquer cânone religioso. Assistir a Menina de Ouro com a guarda baixa, portanto, é o que de melhor se pode fazer por ele.
Não é por mero capricho que Eastwood ambienta Menina de Ouro no mundo algo exótico do boxe feminino. Num contínuo com toda a sua obra desde Os Imperdoáveis, e em especial com o recente Sobre Meninos e Lobos, o filme trata em boa parte da insensatez e da futilidade da violência. Ver homens punindo um ao outro num ringue é chocante; ver mulheres golpeando-se e vertendo sangue tem o dobro do efeito. Eastwood certamente não partilha da visão católica de que o sofrimento da carne pode trazer elevação espiritual. Em seus filmes, tudo o que a agressão ao corpo faz é desfigurar a ele e à alma. O treinador Frankie Dunn já viu mais exemplos do que gostaria dessa ruína, e por isso se tornou cauteloso em excesso com seus pugilistas, sempre retardando suas chances de enfrentar adversários à altura. É sua forma de evitar que a morte comece a se intrometer cedo demais na vida — e cada cena em que as juntas de Frankie rangem sob o peso da idade ou em que Maggie sai ferida do ringue é o lembrete de Eastwood de que o fim é insidioso e não chega de uma hora para outra. Vai simplesmente ocupando um espaço cada vez maior, até expulsar de vez a vida ou a vontade. O momento dessa constatação é aquele em que se costuma iniciar o inventário do que foi deixado para trás, e Frankie e Eastwood fazem juntos a sua contabilidade, na qual figura, em destaque, a admissão de que provavelmente foram pais bem menos do que perfeitos para seus filhos.
Eastwood é lúcido demais para acreditar que confessar seja o equivalente a expiar. Em seu filme, os erros do passado não têm remédio, e não há como compensar as vítimas deles pelo sofrimento provocado. O máximo que se pode fazer é endereçar a reparação a alguma outra pessoa que necessite dela — no caso de Frankie, Maggie, desprezada por uma mãe frígida e que não tem metade da sua fibra. Menina de Ouro leva essa idéia de reparação até as últimas e devastadoras conseqüências, e com uma franqueza e uma coragem de que poucos homens, que dirá então cineastas, seriam capazes. Eastwood, porém, tem feito desse terceiro ato de sua carreira o melhor, o mais ousado e o mais capaz de inspirar reverência. Seu Menina de Ouro é, em si, uma espécie de salvação por atacado, para Hilary Swank, que tem uma segunda e rara oportunidade de provar que o Oscar de atriz por Meninos Não Choram não foi mera sorte de iniciante, para o cinema clássico americano, revigorado pelo estilo direto e avesso à indulgência de seu diretor, e para o próprio Eastwood. Sua indicação ao prêmio de ator vem sendo atribuída ao fato de, às vésperas de completar 75 anos, ele ter finalmente deixado de interpretar a si mesmo para envergar um personagem. Talvez o correto seja o inverso: em Menina de Ouro, Eastwood pela primeira vez abandona por completo a inflexibilidade de sua persona artística. As rachaduras, manchas e pecados expostos aqui parecem pertencer não ao ator, mas ao homem.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 09/02/2005 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2005 |