Se os Estados Unidos tivessem em 1951 a população que têm hoje, a audiência média da sitcom I Love Lucy seria de 132 milhões de espectadores — ou quatro em cada dez americanos. Para efeito de comparação, o episódio final de Game of Thrones, um recorde recente, teve pouco mais de 19 milhões de espectadores, ou menos de um em cada 100 americanos. Evidentemente, desde os primórdios da TV o jogo da audiência se transformou. Mas, no dia em que Lucille Ball e seu marido, Desi Arnaz, estrearam nos papéis do casal Lucy e Ricky Ricardo, a ruiva atrapalhada e o cubano charmoso, a atriz de carreira mediana explodiu como comediante.
Uma certa semana, porém, tudo quase veio abaixo: Lucille foi denunciada no rádio como comunista de carteirinha — literalmente. O que, em plena caça às bruxas macarthista, poderia significar morte súbita para a sua carreira. Foi uma semana terrível, relembram os membros da equipe de I Love Lucy que dão seus depoimentos em Being the Ricardos (Estados Unidos, 2021), que estreia na terça 21, na Amazon Prime Video — e o diretor e roteirista Aaron Sorkin a torna ainda pior ao deslocar para esse mesmo punhado de dias duas outras crises reais, a da gravidez de Lucille (Nicole Kidman) bem no meio de uma temporada e a de uma traição de Desi Arnaz (Javier Bardem) tornada muito pública.
I Love Lucy: Colorized Collection
Sorkin gosta de situar dramas pessoais em ambientes de trabalho — veja-se A Rede Social e Steve Jobs, ou as séries The Newsroom e The West Wing — porque tem predileção por personagens de alta performance e porque em locais como os que ele escolhe crises são não só frequentes e inevitáveis, como exigem respostas que são uma combinação volátil de processo colaborativo e choque de egos. Personalidades emergem em relevo, e a Lucille Ball que se vê aqui, na versão concentrada do roteirista e diretor, é uma motoniveladora que questiona cada linha dos scripts, é leal mas nem sempre encorajadora com os colegas (Nina Arianda e J.K. Simmons estão excelentes como os atores que interpretavam o casal amigo dos Ricardo) e sempre em busca de um equilíbrio difícil: afirmar suas escolhas criativas e de negócios sem diminuir Desi — também ele um profissional consumado — diante da rede CBS e dos patrocinadores e, sobretudo, sem ameaçar ainda mais seu casamento já tão conflagrado. Lucille, enfim, é uma mina de ouro, mas, por ser mulher, tem de brigar com unhas e dentes pelo direito de sê-lo.
I Love Lucy: Lucy Ricardo Talking Bobble Figurine
Como retrato de uma comediante, o desta Lucille se choca com o do senso comum. E também a escolha de Nicole Kidman para o papel é contraintuitiva mas acertada: ela se sai muito bem nas cenas que reproduzem esquetes de I Love Lucy (aquele em que amassa uvas com os pés na Itália é impagável). E nocauteia como a Lucille dos bastidores.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2021, edição nº 2769
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