Quando o rosto do pequeno ator Petr Kotlár está em close, ele é em si uma paisagem, feita de fúria, indignação e desconsolo. Quando a câmera do diretor checo Václav Marhoul se afasta, porém, vê-se como o menino é frágil. Seu personagem sem nome quase some no meio dos campos e florestas fotografados em um preto e branco belíssimo, e aparece em desvantagem assustadora em relação aos seus inúmeros torturadores — aldeões de superstições medievais, um moleiro velho corroído de ciúme, soldados alemães para os quais ele é um alvo, uma jovem que o usa para satisfazer sua luxúria, os cossacos que vêm exterminar um vilarejo e um pedófilo ao qual ele é entregue por um padre iludido. Na sua fuga por um Leste Europeu de detalhes duramente realistas mas também de contornos alegóricos e fronteiras indeterminadas, o garoto judeu é como o estorninho que um camponês — um dos poucos personagens que se abstêm de fazer-lhe alguma perversidade — pinta de branco e lança ao céu: confundido com um inimigo, ele é feito em pedaços assim que se junta ao seu bando. A cena dura alguns segundos; já a odisseia do protagonista de O Pássaro Pintado (The Painted Bird, República Checa/Ucrânia/Eslováquia, 2019), que acaba de estrear na plataforma Cinema Virtual, dura quase três horas na tela, ou vários anos em tempo dramatúrgico. Ao final dela, a dúvida será se algo de humano restou nele.
Alardeado como autobiográfico, o romance do polonês Jerzy Kosinski em que o diretor se baseia foi desmascarado, nos anos 80, como uma apropriação dos relatos de outros sobreviventes do Holocausto. Essa questão de autenticidade é irrelevante diante da pergunta mais inquietante de todas — como isso foi possível? Com seu filme extraordinário, Marhoul reafirma que não há explicação para ela, só resposta: porque a natureza humana é capaz de tudo. Inclusive do fragmento de esperança com que se acena no final e que repentinamente parece imenso.
Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697