Mikha (a ótima Seo-Hyun Ahn) era bebê, Okja era um filhote, e as duas cresceram juntas. E como Okja cresceu: agora, aos 10 anos de idade, ela pesa bem umas quatro toneladas. Com olhos doces e inteligentes e jeito de hipopótamo, Okja é um superporco – uma linhagem nascida da modificação genética que se desenvolve nos laboratórios sinistros (medonhos, na verdade) da Mirando, uma gigante do setor agropecuário. Numa elaborada ação de marketing planejada pela presidente da empresa, Lucy Mirando (Tilda Swinton), Okja e outros 25 filhotes de superporco foram distribuídos entre fazendeiros de 26 diferentes países. Passada uma década, a Mirando quer retomar os animais para seus propósitos. Para Mikha, é um choque e uma traição: ela achou que permaneceria sempre junto de Okja e do avô na fazendinha bucólica no alto das montanhas, no interior da Coreia do Sul. Inconformada, Mikha parte atrás de Okja e desencadeia um caos em série, que repercute cada vez mais longe e mais fundo.
Em Okja, que estreou diretamente na Netflix nesta quarta-feira 28, o diretor sul-coreano Joon-Ho Bong, dos sensacionais Memórias de um Assassino, O Hospedeiro, Mother e Expresso do Amanhã, se atém à linha dos filmes clássicos de “uma criança e seu cão”, mas vai juntando nele coisas que em tese não vão bem juntas – sátira, pastelão, drama e, por fim, tragédia lacerante. No começo, o resultado é algo estranho, mas a partir de certo momento chega a ficar glorioso: Okja é a história de um amor e uma lealdade indissolúveis – e também uma história maravilhosamente bem contada de como, a cada passo que nos afastamos da origem da comida, menos sabemos o que é, e de onde veio, aquilo que colocamos na boca (um raciocínio que vale, aliás, para tudo que consumimos). Não se preocupe que não é um panfleto vegano; o próprio Joon-Ho Bong diz que fazer o filme até o deixou com desejo de deixar de ser carnívoro, mas não se pede a um coreano que abra mão do seu churrasco típico.
Okja apenas indaga se, além de matar para comer, é preciso também torturar e degradar, e se queremos mesmo continuar fingindo que os bifes e as costelinhas nascem tranquilos e sem dor na gôndola do supermercado. É nisso que eu gosto de acreditar na hora de fazer o jantar. Okja, porém, me obrigou a encarar o desastre desumano (por falta de palavra melhor) do qual sou participante, e a contemplar minha responsabilidade por ele. Da mesma forma que em Memórias de um Assassino e O Hospedeiro, Joon-Ho Bong leva a coisa para um lado profundamente emotivo: o da nossa impossibilidade fundamental de proteger os inocentes, sejam eles seres humanos ou animais, dos horrores que talvez os aguardem – e de protegê-los, sobretudo, da nossa própria indiferença.
E, no entanto…
Okja causou um bafafá no Festival de Cannes: quando a Netflix avisou que não iria nem tentar lançar o filme nos cinemas franceses, o presidente do júri, o espanhol Pedro Almodóvar, liderou um ataque e disse que de jeito nenhum premiaria uma produção que não vai para as salas de exibição. (A lei francesa exige um prazo de três anos entre a estreia em sala e a disponibilização no streaming. Não, você não leu errado: três anos). Em parte, essa ira vem da crença de que a expansão do streaming e do on-demand vão assassinar o hábito de ir ao cinema. (Esse pânico existe desde que a televisão começou a se popularizar, na década de 50, e as salas de cinema estão aí até hoje, obrigada.) De outra parte, vem do preconceito de que os filmes produzidos por essas plataformas são algo menor – algo que não é cinema de verdade.
A ideia de algo “menor” até vale para muitos dos filmes que o cabo e as plataformas como Netflix e Amazon produziram até aqui, mas o jogo está mudando – e bem rápido. Okja, aliás, é um belíssimo desmentido dessa tese. E, caramba, eu adoraria tê-lo visto na tela grande, porque o talento visual de Joon-Ho Bong é excepcional. Mas, se não posso vê-lo na tela grande, porque o Brasil é um dos países em que Okja não terá estreia em cinema, fico feliz de ao menos poder vê-lo. Na verdade, fico feliz que ele exista do jeito como existe: todos os produtores de cinema aos quais Bong apresentou o roteiro de Okja implicaram com o terceiro ato do filme, que é muito sombrio e doloroso. Ou ele suavizava o terceiro ato, ou necas de dinheiro. A Netflix, diz Bong, comprou o projeto tal e qual ele era, sem interferir nem pedir modificações. Ou seja: em vez de um filme com final disneyficado, Okja é de fato a emoção intensa e a reflexão poderosa que Bong se propunha a oferecer. Ver na tela grande é ideal (e, para boa parte da população, é também impossível). Mas preservar a integridade de uma grande visão criativa é ainda mais importante.
Trailer
OKJA Coreia do Sul/Estados Unidos, 2017 Direção: Joon-Ho Bong Com Seo-Hyun Ahn, Tilda Swinton, Paul Dano, Jake Gyllenhaal, Je-Mun Yun, Giancarlo Esposito, Steven Yeun, Woo-Sik Choi, Lily Collins, Shirley Henderson Onde: na Netflix |