Por essa Mel Gibson provavelmente não esperava, e deve ter vindo como uma grata surpresa: Até o Último Homem, seu filme sobre um paramédico da II Guerra Mundial que sobreviveu ao massacre da Batalha de Okinawa (e salvou muita gente) sem jamais ter pegado numa arma, amanheceu ele próprio, na terça-feira, não só como um sobrevivente, mas como um vitorioso. Até o Último Homem, em cartaz a partir de hoje no circuito, ganhou seis indicações ao Oscar (leia abaixo a resenha, publicada antes do anúncio dos indicados). Para começar, compete como melhor filme. Está também nos páreos de ator (com Andrew Garfield), montagem, mixagem de som e edição de som. O mais doce de tudo: Mel é um dos cinco indicados ao prêmio de direção. (E isso tudo numa semana que já vinha feliz, com o nascimento de seu nono filho – o primeiro com a namorada Rosalind Ross.)
Na linguagem da indústria, tanta honraria quer dizer uma só coisa – que Mel recebeu o equivalente a um perdão papal e está sendo acolhido de volta ao rebanho depois de dez anos de ostracismo. O próximo passo? Estrelar um roteiro de prestígio (o recente Herança de Sangue não conta nesse quesito), algo que ele fará com cautela semelhante à que empregou como diretor na escolha de Até o Último Homem: tem estreia prevista ainda para este ano The Professor and the Madman (“O Professor e o Louco”), em que ele vive o linguista encarregado de, em 1857, compilar o Oxford English Dictionary. Farhad Safinia, criador da ótima série The Boss, dirige, e Sean Penn faz o interno de um manicômio judiciário que bombardeia o linguista com 10 000 sugestões de verbetes. O que se desenha aí é um embate de intelectos e personalidades, sem violência, religião, destempero nem controvérsia que possam alimentar as brasas que porventura ainda restem na fogueira em que Mel se queimou. Uma coisa é certa: já era hora mesmo de encerrar os assuntos passados. Mel dificilmente voltará a ser quase-unanimidade, como antes. Mas o julgamento público sobre as suas várias (e muitas vezes virulentas) transgressões já se vinha arrastando havia tanto tempo que estava ficando com cara de inquisição.
Não foi fácil assistir à autodestruição de Mel Gibson, na década passada. Desde a virada dos anos 70 para os 80, quando foi revelado pelo cineasta e amigo George Miller em Mad Max, Mel se provara um caso único: um astro de magnetismo imensurável, um ator imprevisível e não raro feroz, e um diretor que já em seu segundo filme, Coração Valente, de 1995, se mostrou capaz de igualar, atrás da câmera, sua temperatura e seu dinamismo como intérprete. Mel era uma figura querida do público. Era conhecido por ser brincalhão, por ser afável com todo mundo, por fazer amizades profundas, e também por ser meio indomável. Mel emitia aquela eletricidade das criaturas que não é possível domesticar; não entrava no figurino de marketing dos estúdios. Era o que era, para o bem e para o mal. E, por ser genuíno, conquistava respeito sincero.
Em algum ponto, a coisa começou a virar. Mel era igualmente conhecido por às vezes perder as estribeiras (o álcool ajudava), e também pelos pontos de vista conservadores e por ser um católico inflexível. Mas essas são questões particulares; à parte as pessoas diretamente envolvidas, ninguém tem nada a ver com elas. Só que a esfera privada começou a invadir a esfera pública. A plateia de fé religiosa mais ortodoxa em geral se colocou a favor de A Paixão de Cristo, lançado em 2004, mas a violência extrema com que Mel mostrava o calvário de Jesus e a veia antissemita do filme ofenderam muita gente. Em 2006, parado pela polícia por dirigir embriagado, ele despejou sobre um dos policiais uma torrente de injúrias antissemitas que, claro, viralizou. Muitas outras declarações infelizes se sucederam; não dava para fingir que se tratava de um rompante isolado. Em 2010, caiu na rede a gravação de uma conversa telefônica em que Mel insultava com fúria sua ex-namorada, Oksana Grigorieva – gravação que foi acompanhada por alegações de agressão física, e mais ofensas e processos de parte a parte. Mel virou veneno. Ninguém queria chegar perto dele – exceção feita à sua primeira mulher, Robyn, que foi a público afirmar que nunca houve qualquer gesto violento durante o longo casamento deles, e a amiga Jodie Foster, que deu a ele um bonito papel em Um Novo Despertar (no qual, aliás, Mel estava excelente).
Desde lá, Mel tem preferido a circunspecção. Deu um basta às declarações polêmicas; e, nas ocasiões em que é entrevistado, não sai fingindo que não aconteceu nada – mas tenta tratar do assunto com discrição e algum humor (nem demais, nem de menos). Também não tenta se passar pelo que não é, mas sim mostrar que é a mesma pessoa – agora, porém, com autocontrole. Cumpriu sua sentença, enfim. E planejou uma volta à cena sóbria, evitando chamar a atenção para si e procurando encaminhá-la para Até o Último Homem. É provável que o resultado desse mea culpa indireto tenha superado suas próprias expectativas. O recado que as indicações ao Oscar mandam, pelo menos, é claro: bem-vindo de volta. Agora, por favor, comporte-se.
Leia a seguir a resenha publicada na revista Veja:
ADEUS ÀS ARMAS
Com uma história verídica que exalta o pacifismo e a fé de um paramédico da II Guerra, Mel Gibson começa a empreender seu retorno ao público e à indústria
Dizer que o soldado Desmond Doss nunca pegou em armas não é força de expressão. Durante todo o seu treinamento e depois dele, sob o fogo cerrado dos japoneses na Batalha de Okinawa, em maio de 1945, ele se recusou até mesmo a tocar um rifle. Doss, contudo, alistara-se voluntariamente. Adventista inflexível, que tomava ao pé da letra o “Não matarás”, penou para persuadir o Exército a enviá-lo ao front desarmado. Mais de setenta homens terminaram por dever a vida à sua perseverança – todos aqueles que ele resgatou dos escombros da batalha, sozinho, carregando-os nas costas, numa ação que lhe valeu a mais alta condecoração militar. Fé religiosa, convicção, estoicismo frente ao escárnio, e também a mutilação horripilante que tiros, granadas, morteiros e lança-chamas podem infligir: não há diretor ao qual esses temas tenham mais a dizer do que Mel Gibson. Até o Último Homem é um filme feito com fibra, com fortes doses de sentimentalismo e, às vezes, com virtuosismo – nas inúmeras, detalhadas e explícitas cenas de carnificina.
É feito com certo ardil, também, na maneira como Gibson equaciona seu próprio ostracismo – que resultou de alguns destemperos muito virulentos e bastante públicos – com o desprezo dos outros soldados pelo ingênuo e fervoroso Doss (Andrew Garfield, sublinhando esses atributos com gosto). Esta, entretanto, é a primeira ponte firme que Gibson consegue construir com o público e a indústria desde sua queda em desgraça, na década passada. O filme fez uma bilheteria convincente, ao norte dos 150 milhões de dólares. Sobretudo, relembra ao público que cineasta brioso Gibson pode ser. É pena, porém, que ele não tenha arrumado um papel para si no filme. Entre tantas atuações previsíveis, sua espécie singular de visceralidade poderia ter feito de Até o Último Homem não só uma ponte, mas um retorno de fato.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 25/01/2017 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |
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ATÉ O ÚLTIMO HOMEM (Hacksaw Ridge) Estados Unidos/Austrália, 2016 Direção: Mel Gibson Com Andrew Garfield, Luke Bracey, Vince Vaughn, Sam Worthington, Teresa Palmer, Hugo Weaving, Rachel Griffiths Distribuição: Diamond |