De Nasce uma Estrela a Fama e La La Land, este é um roteiro consagrado: o do punhado de sonhadores que aposta tudo na ambição do sucesso, esperando contar não só com a própria persistência, mas também com algum lance inefável (e indispensável) de sorte. As barreiras, porém, são desafiadoras: Jack (David Corenswet) tem cara e porte de galã, mas também mulher grávida de gêmeos e não pode se dar ao luxo de esperar pelas oportunidades; Camille (Laura Harrier) é linda e talentosa, mas a pele negra reduz quase a zero sua chance de conseguir um papel que não seja de criada; Archie (Jeremy Pope) escreveu um roteiro tão bom que ganhou o sinal verde de um grande estúdio, mas o semáforo imediatamente mudará para o vermelho se descobrirem que ele é negro e homossexual; loira e esbelta, de olhos azuis cintilantes, Claire (Samara Weaving) tem o visual que se espera de uma estrela, mas seu pai, o chefe do estúdio, pretende matar no nascedouro suas aspirações.
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Esse “mas” é uma força poderosa, e o era ainda mais no período pós-II Guerra, quando o star system com que os estúdios controlavam a vida dos astros e estrelas estava no auge e o Código Hays obrigava a indústria do entretenimento a uma fachada indevassável de puritanismo. Vários dos outros personagens de Hollywood (Estados Unidos, 2020), a nova série do megacriador Ryan Murphy para a Netflix, já se resignaram à distância que separa a ilusão da realidade — viraram funcionários obedientes aos estúdios, dondocas ricas e insatisfeitas, gays fadados a nunca se assumir, gigolôs que atendem esses dois grupos de clientes e, em um caso, um agente de talentos tão cheio de amargura que a cidade inteira o conhece pelo tratamento horrendo que dispensa aos seus contratados. Henry Willson, o agente interpretado por Jim Parsons, é um personagem real e bastante célebre — pela sordidez, por ter lançado estrelas como Lana Turner e por ter fomentado a febre por astros fortões que dominou o cinema dos anos 50. Rock Hudson, um dos campeões de bilheteria do período, foi seu cliente — e vítima — mais famoso: Willson fechou o rapaz doce do interior em um armário trancado a cadeado, tornando-o um caso exemplar de infelicidade. (Outro caso curioso é o do posto de gasolina que serve como bordel drive-thru: de fato houve um estabelecimento nesses moldes no Hollywood Boulevard.)
Também Hudson comparece na série, mas tanto ele como Willson e os outros personagens verídicos ou fictícios seguem trajetória muito diversa daquela que a realidade teria guardado para eles: esta Hollywood não só fabrica faz de conta como se torna o lugar em que todas as barreiras de cor, gênero, sexualidade e idade podem, afinal, ser demolidas. Murphy antecipa em quase cinquenta anos um marco histórico: só em 1992 uma mulher — a ex-modelo e ex-diretora de produção Sherry Lansing — assumiu a chefia de um estúdio, mas aqui Avis, personagem da diva Patti LuPone, toma as rédeas do negócio quando o marido adoece, e faz um trabalho brilhante.
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Murphy tem um lado sombrio (American Horror Story, O Povo contra O.J. Simpson, O Assassinato de Gianni Versace) e outro de cores alegres (Glee, The Politician). Com Hollywood, ele pretendia achar uma veia intermediária, mostrando como preconceitos antigos ainda vigoram e, ao mesmo tempo, homenageando o poder de mudança de iniciativas como o #OscarTãoBranco e o #MeToo. Entre a produção e o lançamento, porém, o mundo mudou de assunto. E, se a pandemia por um lado favorece o escapismo vindo de Hollywood, por outro lado ela o torna quase perverso: sempre que a ficção imagina desfechos excessivamente otimistas, a realidade trata de colocá-la no seu lugar.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685
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