Em um lugarejo onde nenhum forasteiro teria o que fazer e no qual a vidinha é a mesma desde sempre, a festa em comemoração da chegada da primavera traz visitantes inesperados: Moiraine (Rosamund Pike), uma feiticeira da ordem das Aes Sedai, acompanhada de seu guardião, Lan (Daniel Henney); e um cavaleiro sinistro, de preto, com um capuz que cobre seu rosto. Moiraine causa sensação, mas a presença do cavaleiro das sombras é percebida apenas por alguns — os amigos Rand (Josha Stradowski), Egwene (Madeleine Madden), Mat (Barney Harris) e Perrin (Marcus Rutherford). Não por acaso, são eles, justamente, o que Moiraine procura ali: um dos quatro tem de ser a figura descrita em uma profecia. Naquela mesma noite, a aldeia é atacada por trollocs, enormes criaturas animalescas que fazem parte do exército das trevas. E assim, com a fuga, os quatro amigos mais Nynaeve (Zoë Robbins), a curandeira local, formarão uma liga com Moiraine e Lan.
Apesar das várias coincidências — um cenário pastoral que tem de ser trocado por grandes perigos, magia, cavaleiros negros, criaturas hediondas, uma força maléfica que começa a se reerguer e até anéis (as Aes Sedai levam sempre uma joia em forma de serpente nos dedos) —, não se trata de uma versão de O Senhor dos Anéis. Trata-se, isso sim, da adaptação em forma de série da saga fantástica que, até ser ultrapassada pela Guerra dos Tronos, de George R.R. Martin, só perdia em vendas nesse segmento para a obra de J.R.R. Tolkien: A Roda do Tempo (The Wheel of Time, Estados Unidos, 2021), que tem já os três primeiros episódios disponíveis na Amazon Prime Video (os cinco restantes dessa primeira temporada — uma segunda já foi aprovada — entram semanalmente).
Muitas das semelhanças, é claro, se devem ao próprio formato europeu de saga heroica adotado em A Roda do Tempo. Escrita por Robert Jordan (1948-2007), um cavalheiro com barba de general da Guerra Civil que saiu condecorado do Vietnã, foi engenheiro nuclear na Marinha americana e era assíduo nos cultos da igreja episcopal de sua cidade na Carolina do Sul, a série de catorze livros e uma “prequel” não tem a ressonância mítica alcançada por Tolkien, um profundo conhecedor da cultura, da mitologia e dos idiomas nórdicos, que contêm a matriz dessas histórias. Mas Jordan inova em relação a Tolkien na preponderância dada ao xadrez político (no que precedeu o expoente nessa matéria, George R.R. Martin) e no protagonismo feminino não só forte, como também complexo.
Tecnicamente, homens e mulheres dividem por igual a cena em A Roda do Tempo. No subtexto, porém, elas dominam: as Aes Sedai são as canalizadoras do Poder, a força imanente à natureza, e têm autoridade para remover essa habilidade dos homens que tentem (ou, pior, que consigam) exercê-la, pelo que são também detestadas e perseguidas. A Roda do Tempo, porém, não incorpora noções demasiado idealizadas de sororidade: como qualquer lugar em que um círculo de poder se concentre, a Torre Branca, sede das Aes Sedai, ferve com rixas de poder e intrigas políticas. “Gosto do fato de que o que se tem aqui não é a mulher que sabe usar armas ou é forte no campo masculino. Há uma arena na qual as mulheres lutam sozinhas”, disse Rosamund Pike a VEJA.
Rosamund, sempre uma força, ajuda na constatação de que, não obstante a ótima participação de Daniel Henney, a metade feminina do elenco fica vários pontos à frente. Até o figurino de Moiraine, mais prático do que descrito nos livros, reproduz essa lógica de que ela e as outras personagens femininas têm um trabalho decisivo a ser feito. Bem produzida, com locações belíssimas na República Checa e momentos empolgantes, A Roda do Tempo talvez não seja capaz de transportar o espectador com intensidade comparável à da obra de Tolkien. Mas ajuda a amenizar a espera pela série O Senhor dos Anéis, também da Amazon, que deve estrear ano que vem, em 2 de setembro — bem a tempo do aniversário de Bilbo e Frodo Baggins, em 22 de setembro, consagrado pelos fãs como “Hobbit Day”.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765
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