Silêncio
O cenário (lindo) é o Japão do século 17. A pergunta central é atualíssima: existe alguma verdade universal?
O cinema de Martin Scorsese é quase todo feito de propulsão, daquela voracidade narrativa que mobiliza ao máximo todos os recursos que ele tem ao dispor – a imagem, a música, a montagem, as interpretações – e faz de Taxi Driver, Os Bons Companheiros, Cassino, Os Infiltrados ou O Lobo de Wall Street experiências imersivas, quase alucinatórias. Nas poucas ocasiões em que Scorsese preferiu a reflexão, como em Kundun ou A Época da Inocência, o saldo soou artificial e incompleto. Não, porém, no belíssimo Silêncio, a história de dois jovens jesuítas portugueses que, nos anos 1630, entram escondidos no Japão para procurar seu mentor, o padre Ferreira (Liam Neeson). O cristianismo está sob perseguição feroz dos senhores feudais japoneses; os missionários europeus e também os japoneses que se converteram vêm sendo impiedosamente torturados ou executados. Ferreira é um símbolo do zelo missionário, e é um choque a notícia de que ele, afinal, se acovardou e renegou sua fé. O padre Sebastião (Andrew Garfield) e o padre Garpe (Adam Driver) querem descobrir se isso é verdade. E, como são provavelmente os únicos sacerdotes católicos ainda vivos no Japão, querem também reviver a Igreja no país, amparando os cristãos que restaram e fazendo novas conversões. O resultado, é evidente, será catastrófico. Para o devotíssimo Sebastião, em particular, o caminho que se abre é o da renúncia de todas as suas crenças mais caras.
Silêncio é a adaptação de um romance do escritor Shusaku Endo (1923-1996), que fazia parte de uma minoria muito pequena e muito exótica aos olhos do seu país – a dos japoneses católicos. Esse desconforto e essa tentativa de conciliar duas coisas irreconciliáveis – ser profundamente japonês, e profundamente católico – marcaram toda a sua obra, e atingiram seu ápice nessa pequena jóia que é Silêncio. O livro e o filme se perguntam, cheios de angústia, se é possível (ou até se é justo) tentar compartilhar uma verdade pessoal como se ela fosse universal, por melhor que seja a intenção e por mais transformadora ou libertadora que a verdade pareça ser. E aí, para mim, está o que faz o filme de Scorsese palpitar sob a sua beleza atordoante, seu rigor formal e a quietude de suas cenas: não posso imaginar pergunta mais oportuna do que essa. Em qualquer tempo, mas particularmente no momento em que qualquer indivíduo com uma conta no Facebook acha que pode ser um tribunal de inquisição do pensamento alheio.
Leia, a seguir, a resenha completa:
Quando Deus se Cala
Em Silêncio, de Martin Scorsese, um jesuíta no Japão feudal vive um dilema moral terrível: junto com a salvação, ele pode muito bem estar trazendo a ruína
Diz-se que o padre Ferreira (Liam Neeson) renegou sua fé, mas a notícia é recebida com incredulidade: Ferreira foi sempre o mais fervoroso dos missionários jesuítas no Japão, e o mais convicto de que o martírio leva a alma até perto de Cristo. É certo, portanto, que resistiria às mais cruéis torturas com que, nos anos 1630, os senhores japoneses tentam erradicar do seu país todo traço da conversão ao cristianismo. Ou não? Os jovens padres portugueses Sebastião (Andrew Garfield) e Garpe (Adam Driver), pupilos de Ferreira, decidem entrar, clandestinamente, no agora perigosíssimo Japão. Querem encontrar Ferreira – caso ainda esteja vivo – e verificar os relatos acerca dele. E querem também reacender a chama da Igreja entre os paupérrimos camponeses que os missionários lograram converter. Sebastião se imagina a fagulha que trará de volta a luz. Obcecado por uma imagem do Cristo sofredor, ele almeja não só o êxito do seu empreendimento, mas também o martírio. Quer aplacar a sede espiritual dos cristãos japoneses – e, com ela, matar a própria sede. Atormenta-o, porém, que Deus nada lhe diga. Adaptado do romance homônimo do escritor japonês e católico Shusaku Endo, Silêncio, de Martin Scorsese, anda sobre o fio de uma navalha: é Deus que se mantém calado, ou Sebastião que está surdo à resposta?
Scorsese é em geral mais afeito ao impacto que às minúcias, mas é notável o apuro com que ele preserva o dilema proposto por Endo (1923-1996). Muito do sucesso da empreitada advém da decisão de seguir a pista divina, por assim dizer. Silêncio tem algum diálogo e alguma narração; quase não tem música. Sua eloquência está depositada nas imagens, compostas com imensa riqueza narrativa. Em parceria com o diretor de fotografia mexicano Rodrigo Prieto, o cineasta faz uma homenagem aos diretores que formaram o imaginário do Japão de sua geração. Sobretudo a Akira Kurosawa, de quem ele toma emprestadas algumas regras cardeais, como a da composição rigorosamente pictórica das cenas ou a movimentação de elementos da paisagem – o capim, a chuva, a neblina – contra o desenho dos personagens na tela.
Ainda que isso soe como abstração, ou como capricho endereçado a cinéfilos, o efeito é potente. Por meio dessas pinturas em mutação, evocam-se a ligação estreita entre natureza e espiritualidade na cultura japonesa, a extrema hierarquização social, ou ainda a insensibilidade com que Sebastião e Garpe se servem do desamparo dos camponeses. Acima de tudo, a intrusão de rostos ocidentais nesse cenário sinaliza a incapacidade dos personagens de compreender esse mundo e aceitar que, nele, a salvação que eles oferecem talvez signifique a ruína dos que a recebem.
O elenco japonês, estupendo, move montanhas no sentido de avançar as ideias implícitas em Silêncio. Tão afável quanto implacável, o velho samurai e inquisidor Inoue (o magistral Issei Ogata) tenta explicar a Sebastião que, muito antes de ser teológica, a questão é ética e moral: como pode o padre desejar que os camponeses se tornem párias, extraviados em uma cultura na qual o catolicismo é um corpo estranho? E como pode consentir que ele, Inoue, torture os camponeses para expulsar de seu meio esse corpo estranho? – porque sim, ele continuará a torturá-los até que sua tarefa de extirpar o cristianismo do Japão esteja completa.
Da crise de fé de Sebastião, o filme se lança, dessa maneira, em um território ainda mais movediço. Assim como para outro autor de grande estatura literária e fé minoritária – o inglês Graham Greene, que se converteu ao catolicismo na idade adulta –, na obra de Endo são inescapáveis tanto o estigma como as inesperadas implicações morais dessa contingência. Silêncio se pergunta se existe caridade em desejar que uma fé viceje numa terra que a tem como inimiga. Em um diálogo com Ferreira, a quem Sebastião por fim encontra, surge uma possibilidade devastadora – a de que a caridade talvez esteja em matar tudo que se plantou. O filme sugere que as preces de Sebastião foram, sim, escrupulosamente ouvidas, e a resposta a elas é um martírio de fato. Contém o pior suplício que se poderia dar a ele, sem nada da glória que ele ambicionava.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 15/03/2017 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |
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SILÊNCIO (Silence) Estados Unidos, 2016 Direção: Martin Scorsese Com Andrew Garfield, Adam Driver, Issei Ogata, Liam Neeson, Tadanobu Asano, Yoshi Oida, Shin’ya Tsukamoto,Yosuke Kubozuka, Ciarán Hinds Distribuição: Imagem Filmes |