Tarantino e ‘Era Uma Vez em… Hollywood’: a reinvenção da história
Em novo filme, o diretor não apenas corrige o passado, como em 'Bastardos Inglórios': ele o refaz para torná-lo belo como só na imaginação poderia ser
Anda-se muito de carro em Era Uma Vez em… Hollywood (Once Upon a Time… in Hollywood, Estados Unidos/Inglaterra/China, 2019; já em cartaz) e, quase sempre, a câmera do diretor Quentin Tarantino vai no banco de trás, como uma passageira clandestina. Seja no conversível MG de Roman Polanski, no Porsche de Sharon Tate, no enorme Cadillac Coupe Deville de Leonardo DiCaprio, no Karmann Ghia detonado de Brad Pitt ou até no Ford Fairlane velho em que quatro jovens meio fora de si viajam de um rancho no deserto até uma casa nas colinas de Hollywood, os trajetos da cidade são percorridos em alta velocidade e em curvas fechadas, os corpos balançando com as mudanças de direção e o vento que entra pelos vidros abertos fazendo voar os cabelos. São imagens que evocam a sensação de liberdade e de inesperado, e por si sós elas já transportam o espectador para a Califórnia ensolarada e embriagada de 1969, onde o polonês Polanski (Rafal Zawierucha) era um jovem cineasta festejado, onde sua mulher, a atriz Sharon Tate (Margot Robbie), começava a despontar, e onde o astro de seriados de faroeste dos anos 50 Rick Dalton (DiCaprio) afogava no copo as mágoas de um prematuro fim de carreira junto do amigo inseparável, dublê e faz-tudo Cliff Booth (Pitt). Esses dois últimos são personagens fictícios. Mas, na realidade paralela inventada por Tarantino, o acaso dá a eles papel importante no funesto 9 de agosto de 1969 — o dia em que Sharon Tate, grávida de oito meses, três amigos seus mais um rapaz de 18 anos foram assassinados a facadas por integrantes do culto liderado por Charles Manson. No início do filme, é fevereiro ainda, e Rick fica exultante ao perceber que Polanski se mudou com Sharon para a mansão vizinha à sua, em 10050 Cielo Drive. “Imagine fazer um filme com ele!”, sonha.
O 9 de agosto é, claro, o destino final para o qual Era Uma Vez se encaminha, e portanto não há cena no filme, por mais ligeira, que não seja tingida por essa apreensão. Mas Era Uma Vez passeia e divaga, acompanhando em um ritmo casual as banalidades desses meses na vida de seus personagens. Dessa forma, não apenas recria com fidelidade meticulosa a parte real da história como também, nos seus descontraídos 161 minutos, faz a plateia sentir por essas pessoas a mesma afeição que Tarantino dedica a elas. Sharon dança, numa festa, vestida em um estonteante conjuntinho amarelo, observada com admiração pelo astro Steve McQueen (Damian Lewis), ou vai ao cinema ver a si mesma em Arma Secreta contra Matt Helm, deleitando-se com as risadas que suas cenas provocam, os pés descalços apoiados no encosto da poltrona da frente (é notório o fetiche do diretor por pés femininos, mas Sharon de fato odiava calçar sapatos) — e é inevitável pensar na doçura que a Família Manson destruiu.
Também não há como não se deliciar com a trajetória de Rick, que chora no estacionamento do célebre restaurante Musso & Frank ao ouvir de um agente (Al Pacino) que, se continuar a aceitar participações como vilão em seriados alheios, pode dar sua carreira como defunta. Mas então, numa cena magistral, na qual DiCaprio brilha, Rick contracena — de novo como vilão — com uma aplicada menina de 8 anos (a fenomenal Julia Butters) e, junto dela e por meio dela, redescobre algo fundamental sobre ser ator. Ao embarcar para a Europa para fazer spaghetti westerns (assim como Clint Eastwood o fez depois do seriado Rawhide), já é outro homem.
Os percursos pelos quais Tarantino conduz seus personagens são sinuosos, mas nada têm de aleatórios. Na maior parte, aliás, são ricos em informação verídica, como o trecho em que, levando Rick para lá e para cá no Cadillac, Cliff a toda hora vê, nas esquinas de Hollywood, uma hippie magérrima e sorridente (Margaret Qualley) catando o lixo atrás de comida. Numa dessas ocasiões, recusa o sexo oral que ela oferece, mas concorda em levá-la até a “casa” dela — que, para surpresa de Cliff, é o Rancho Spahn, o antigo lote cenográfico onde Rick filmava seu seriado, e que agora abriga Manson e seus seguidores. Cada um desses detalhes encontra respaldo no que se sabe da Família Manson, mas Tarantino os usa como plataforma para uma sequência espetacular, levada na fervura baixa porém transbordante de tensão, em que Cliff protagoniza um momento de faroeste que é um preâmbulo do esperado banho de sangue final. A catarse violenta é um sine qua non dos filmes de Tarantino, mas aqui ele não a usa apenas para corrigir a história, como o fez em Bastardos Inglórios e em Django Livre: usa-a para preservar, na sua imaginação e na de seu público, algo delicado e precioso, tão cheio de promessa quanto cada uma daquelas curvas fechadas com que seus personagens se divertem numa Hollywood que era então, ainda, um sonho.
Leia também:
A noite em que o sonho hippie foi assassinado
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648