Terceira temporada de ‘The Crown’: no reino da discórdia
Série fala muito de perto à Inglaterra politicamente tumultuada de hoje — e passa em um difícil teste: a troca completa de elenco
À mesa do café da manhã, Philip, duque de Edimburgo e consorte da rainha, olha os jornais com desgosto: é difícil compreender como a Inglaterra, outrora tão próspera, agora produz tal quantidade de más notícias, comenta Philip com a mulher. Está-se no último episódio desta terceira temporada de The Crown, que estreia na Netflix neste domingo 17 — e, desde o início dela, as más notícias têm sido uma constante na vida da nação e nos corredores do Palácio de Buckingham. Mas agora a sensação é de saturação: nem nos anos terríveis da II Guerra Mundial o horizonte parecia tão sombrio, porque então ao menos prevalecia o senso de solidariedade entre os ingleses. Agora, ao contrário, a desunião é a ordem do dia. Elizabeth II, o fino reboco com que a Inglaterra disfarça suas trincas e fissuras, sente-se insuficiente para remendar as rupturas — que começam em sua própria família, imersa em um estado persistente de discórdia.
Peter Morgan, o criador e roteirista de The Crown, não precisou inventar nem acomodar fatos para que uma descrição do período abarcado por esta nova leva de episódios, de 1964 a 1977, coincida em suas linhas gerais com um retrato da Inglaterra dos dias de hoje. Estão ali, sem tirar nem pôr, o descontentamento social, a polarização política e as perspectivas econômicas lúgubres, assim como as tribulações da dinastia reinante. A partir daí, Morgan organiza um ataque em três flancos: primeiro, faz drama de grande estirpe, envolvente e empolgante; recria alguns eventos marcantes da história recente do Reino Unido e recupera outros menos conhecidos; e, finalmente, deixa uma consideração — a de que essa é uma nação que já resistiu a um sem-número de abalos profundos, e é portanto provável que, desde que não perca a si mesma de vista, sobreviva ao Brexit, ao racha entre os príncipes William e Harry e a qualquer outra crise que venha a surgir. E as crises vão vir, sugere Morgan, porque elas são em grande parte o tecido de que a Inglaterra se faz e refaz.
Quanto à própria The Crown, ela consegue passar incólume pelo que poderia ser um golpe irreparável para uma série: a decisão de continuar uma mesma história com uma substituição praticamente integral do elenco. Claire Foy foi estupenda como a jovem monarca das duas primeiras temporadas — mas Olivia Colman, recém-premiada com o Oscar pelo papel da rainha Anne em A Favorita, está soberba como a Elizabeth II da meia-idade, embora pouca semelhança física tenha com a figura real ou com a atriz que a antecedeu. Também Helena Bonham Carter em nada se parece com Vanessa Kirby, que interpretava a princesa Margaret, a insatisfeita irmã menor da rainha — mas acerta na dosagem de narcisismo e frustração. Philip saiu ganhando: Matt Smith era bom no papel do marido de Elizabeth, mas Tobias Menzies, de Outlander, é nada menos do que espetacular, e faz da rigidez exterior do consorte real o sinal de um tumulto interno alarmante. Impecável, também, é a escolha dos novos intérpretes que agora entram na história.
O primeiro destaque é Jason Watkins, excelente como o primeiro-ministro Harold Wilson. Eleito pelo Partido Trabalhista e muito plebeu, o socialista Wilson causa arrepios em Elizabeth: “Nem jovem nem velho, nem alto nem baixo, nem frio nem quente”, diz ela em um jantar, espantada com a banalidade do novo chefe de Estado. Se Winston Churchill fora o grande mentor de Elizabeth, porém, em Wilson ela vai aos poucos encontrar algo imprevisto, e necessário: parte oponente e parte aliado, mais respeitoso do que ela espera mas muito franco, ele é inteiramente seu complemento, e compreende as particularidades de sua situação melhor do que qualquer outro primeiro-ministro até ali. É um relacionamento ditado pelas circunstâncias mas que, quase que sem os parceiros percebam, se torna verdadeiro.
Se a afinidade inesperada entre Elizabeth e Wilson é o apelo que a série faz em prol da busca por um território comum, as relações de Elizabeth em família permanecem conflagradas. As duas primeiras temporadas já haviam explorado a ideia de que ser esposa, mãe ou irmã ao mesmo tempo em que se é emblema místico da identidade nacional é uma missão impossível, e que o fracasso quase sempre vai se dar na esfera pessoal. Nesta nova temporada, entretanto, essas duas dimensões da rainha testam uma à outra de maneira drástica. Quando um deslizamento em uma mina de carvão no País de Gales mata 28 adultos e 116 crianças, Elizabeth demora não apenas a reagir, mas a sentir — e é palpável a repugnância que isso desperta em Philip, que tomou a iniciativa de ir sozinho ao terrível funeral coletivo. O abismo conjugal, enfim, parece cada vez maior — assim como a ambivalência com que Elizabeth trata Margaret, e a consternação com que ela olha seu herdeiro.
No papel do jovem Charles, Josh O’Connor capta com nuances comoventes a vulnerabilidade, o jeito meio sonhador e a disposição melancólica do príncipe, em uma atuação que por si só já propõe uma discussão perspicaz sobre a transformação nem sempre harmônica da família real britânica: justamente por causa desses atributos que sua mãe considera tão indesejáveis, Charles emplaca uma surpreendente vitória diplomática no País de Gales inflamado por aspirações nacionalistas. Mas ganha uma descompostura arrasadora — e, embora a cena em questão seja de uma dureza horrível, o espectador se vê obrigado a admitir que a rainha tem argumentos válidos.
Quando Charles se apaixona por Camilla, que então ainda era solteira, Elizabeth tenta brecar a conspiração doméstica para afastá-lo da namorada imprópria, mas até essa concessão tem um quê de menosprezo; Camilla cura algo da insegurança do príncipe, argumenta a rainha (que se deixou ser voto vencido, com as consequências fartamente conhecidas). E esse, enfim, é o aspecto mais fascinante do que Peter Morgan, seu time de diretores e seu elenco fazem em The Crown: sua recriação da intimidade dos Windsor é a homenagem que o vício da bisbilhotice presta à virtude nobre, e insuficientemente praticada, da reflexão — sobre como um país resolve suas diferenças, decide entre o supérfluo e o útil na sua tradição e também preserva alguma frieza. A de Elizabeth II nem sempre é agradável de ver ou fácil de compreender — mas é mais difícil ainda de praticar.
Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661