Entre as coisas que admiro em Ridley Scott estão o apetite insaciável dele por trabalho e o prazer que ele tem em entrar em produções complicadas: aos 80 anos, ele não quer saber de facilitar as coisas nem de pegar leve. Scott também não está nem aí para o que os outros acham das suas escolhas. Um ano ele ressuscita o épico com Gladiador, no outro o arruina com Êxodo – Deuses e Reis. Faz aquela delícia que é Perdido em Marte, e em seguida estraga a própria obra-prima com Alien: Covenant. E, na sequência, cria uma bafafá inédito – mesmo; nunca se ouviu falar disso antes – apagando de um filme já pronto o caído em desgraça Kevin Spacey e substituindo-o, na vigésima-quinta hora, por Christopher Plummer. Suspeito que, com a troca, Scott tenha salvado o filme de duas formas diferentes: é provável que nunca se venha a saber como era o desempenho de Spacey no papel do bilionário J. Paul Getty – mas o de Plummer é uma maravilha. E é, também, mais complicado (no bom sentido) do que Spacey costuma ser. Como compreender que o homem mais rico do planeta se recuse a gastar o dinheiro que vai salvar a vida do neto de 16 anos – e o neto preferido? Que só aceita negociar o resgate se ele for dedutível do imposto de renda, e se puder usá-lo também para arrancar da nora a guarda dos filhos – para os quais não dá a mínima? Que transforma o quarto de hotel suntuoso num varal de meias e cuecas para não dar um tostão à lavanderia? Amparado pela direção muito vigorosa de Scott, Plummer atinge um duplo feito: expõe para a plateia os mecanismos psicológicos que Getty ocultava de si próprio. Transparente para o espectador e opaco para si mesmo, esse é um personagem que pede um ator com muita experiência e também um conhecimento muito clínico de si mesmo. Scott diz que Plummer sempre fora sua primeira escolha para o papel. Vendo o filme, acredito nele.
Com um centro de gravidade assim tão estável, Todo o Dinheiro do Mundo se desdobra com facilidade em dois planos complementares: a trama ostensivamente policial, sobre o sequestro do frágil John Paul Getty III (Charlie Plummer, sem parentesco com o veterano Christopher) em Roma, os horrores que ele passa nos seus vários cativeiros e a ligação filial que ele forma com um dos sequestradores, Cinquanta (o francês Romain Duris, muito bem). E, de outro lado, o esmiuçamento das bizarras relações familiares dos Getty, que atingem o ponto máximo de crise com as investidas desesperadas de Gail (Michelle Williams), a ex-nora do bilionário, para convencer o velho a ajudá-la a libertar o filho. O saldo é um filme de travessias, digamos assim: de como cada um dos personagens cruza (ou é obrigado a cruzar) as barreiras das suas circunstâncias pessoais no esforço de obter um resultado contrário a elas. Alguns conseguem permanecer do lado de lá; outros retornam ao ponto de partida. E nenhum deles de maneira mais patética do que o próprio J. Paul Getty.
Leia a seguir a resenha completa:
Feito de Granito
Chamado às pressas para substituir o proscrito Kevin Spacey, Christopher Plummer, de 88 anos, fascina como o bilionário J. Paul Getty em Todo o Dinheiro do Mundo
Com a indicação de Christopher Plummer ao Oscar de ator coadjuvante, cimenta-se um dos eventos mais estranhos da história do cinema: a erradicação de um ator – Kevin Spacey, no caso – e sua substituição por outro intérprete em um filme já pronto, montado e “enlatado”. Em Todo o Dinheiro do Mundo, Spacey vivia o bilionário J. Paul Getty (1892-1976), célebre pela fortuna, pela coleção de arte, pelos modos secos e mais ainda por, em 1973, ter-se recusado a pagar o resgate pelo sequestro de seu neto, John Paul Getty III, de 16 anos. Cerca de um mês antes do pré-lançamento do filme nos Estados Unidos, vieram à tona pesadas acusações de abuso e assédio sexual contra Spacey – acusações de teor tão tóxico que o diretor Ridley Scott julgou que Todo o Dinheiro morreria antes de nascer. Numa decisão sem precedentes, Scott refilmou sequências inteiras e recorreu a truques digitais para apagar Spacey. Em seu lugar, colocou Plummer – que, além de ser magistral, prescinde de maquiagem pesada: aos 88 anos, tem idade próxima à de Getty (Spacey está com 58) e também feições ossudas e severas como as dele.
Depois de ver Plummer em cena, não se pode imaginar outro ator que não ele no papel. Argumentando que tinha catorze netos e que, se pagasse os 17 milhões de dólares exigidos pela vida de John Paul (o ótimo Charlie Plummer, sem parentesco com Christopher), logo estaria lidando com outros treze sequestros, Getty resistiu a bem mais que a repulsa da opinião pública: resistiu à força indomitável de sua ex-nora, Gail, que partiu como um trator para cima do sogro e da polícia. Em desempenho excelente, pelo qual mereceria ter sido indicada a melhor atriz, Michelle Williams compõe Gail não como uma mãe desesperada, mas como uma mulher de excepcional autocontrole, tão cerebral no seu jogo de xadrez quanto o próprio Getty.
Durante seis meses, Gail enfrentou pressões inimagináveis. Todos achavam que ela tinha dinheiro, e ela não tinha nenhum (abdicara dele no acordo de divórcio, para garantir a guarda dos filhos). John Paul, sequestrado em Roma por amadores, foi vendido a gente bem mais profissional, e infinitamente pior, que mandou pelo correio a orelha cortada do garoto. A mãe teve de lidar com o “facilitador” de Getty, o ex-espião Fletcher Chance (Mark Wahlberg), e virá-lo em seu favor. E, mais que tudo, arremeteu sem descanso contra um homem granítico cuja obsessão, mais até do que ganhar, era fazer com que os outros perdessem. É um combate tremendo com uma figura que, encarnada por Plummer, provoca não apenas a aversão de costume, mas sobretudo fascínio.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista Veja em 31/01/2018 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2018 |
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TODO O DINHEIRO DO MUNDO (All the Money in the World) Estados Unidos, 2017 Direção: Ridley Scott Com Michelle Williams, Christopher Plummer, Mark Wahlberg, Charlie Plummer, Romain Duris, Timothy Hutton, Andrew Buchan, Marco Leonardi Distribuição: Diamond |