Se o Universo Marvel toma lá suas liberdades com a árvore genealógica de Loki, no que toca ao temperamento ele é fiel à mitologia nórdica: deus do ardil e da astúcia, fã de provocar confusão e discórdia e capaz de mudar de aparência conforme a traquinagem, Loki é irreverente, insolente, petulante, imprevisível, inconsequente — e também espirituoso, persuasivo e sedutor. Tanto pode atrapalhar os planos dos outros deuses (e os dos Vingadores) quanto ajudá-los; difícil é saber se é uma coisa ou a outra que ele está fazendo, já que manter todo mundo na dúvida é um de seus prazeres. É uma temeridade, enfim, dar confiança a uma divindade tão manhosa. Já em Tom Hiddleston pode-se confiar de olhos fechados: interpretando o personagem pela sétima vez em dez anos na minissérie Loki (Estados Unidos, 2021), que estreou quarta-feira na Disney+, o ator inglês dá uma espécie de curso intensivo, em seis episódios (o último vai ao ar em 14 de julho), sobre o porquê de o vilão dos primeiros filmes ter aos poucos se transformado na alma da festa: porque não há minuto dele em cena que seja igual ao outro — ou que não seja uma perfeita delícia.
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Loki notoriamente tem problemas com autoridade (a alheia, entenda-se), de forma que sua situação aqui é exasperadora: detido por um obscuro birô de controle da linha do tempo (uma metabrincadeira da Marvel com as complexidades de seu universo) e posto em um uniforme que fere suas sensibilidades estéticas, ele se vê à mercê da força mais cruel do universo — a burocracia. Com uma paciência que é desafortunadamente infinita, o funcionário Mobius M. Mobius, vivido com nítido prazer por Owen Wilson, está decidido a obrigar o detento a se redimir das suas transgressões: ninguém melhor do que Loki para encontrar a variante do próprio Loki (outra variante; também este Loki é uma ramificação, e não aquele que Thanos matou em Vingadores: Guerra Infinita) que vem se dedicando ao terrorismo temporal/cronológico. A questão, claro, é que com Loki nada nunca é o que parece.
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“Mais Hiddleston, mais Loki”, foi como Kevin Feige, o todo-poderoso da Marvel, explicou a decisão de dar ao personagem várias horas só suas de programa. E que horas: a produção é irretocável (só o futurismo retrô do Departamento de Variação do Tempo já vale a viagem), até as menores “pontas” foram escolhidas a dedo, o roteiro é excelente e a direção — da inglesa Kate Herron — transparece alegria genuína. No centro de tudo, porém, está o desempenho efervescente e, ao mesmo tempo, de precisão meticulosa de Hiddleston, de 40 anos — e que mais de uma década atrás fez o teste para ser Thor mas acabou recrutado como Loki porque, no senso de humor e no escopo dramatúrgico, parecia naturalmente apto a ser a carta fora do baralho.
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Educado em Eton — um ambiente tão rarefeito que é quase uma Asgard — desde os 13 anos, na mesma classe do príncipe William, formado com honras em Cambridge nos clássicos (o que inclui ler grego antigo com fluência) e treinado na Real Academia de Arte Dramática, Hiddleston foi e continua sendo um ator shakespeariano muito laureado, mas adora Loki de paixão. Em inúmeras coisas, aliás, os dois são parecidos — na fisicalidade elástica (Hiddleston é ótimo dançarino), nas roupas eximiamente cortadas, no carisma, no jeito meio pândego, na notável articulação verbal e, a julgar pelos tabloides, no gosto pela diversão. Sua popularidade foi tão instantânea que Feige, dando ele próprio uma de deus da trapaça, alterou radicalmente a linha do tempo do personagem: com morte prevista para Thor: Mundo Sombrio, consumada em Guerra Infinita e, como se vê agora, driblada na base da chicana em Vingadores: Ultimato, Loki merece quantas chances a Marvel consiga lhe dar. Se ele nunca se emendar, melhor ainda.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742
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