O cinema de Naomi Kawase e a lição das quadras de basquete
Escolhida para realizar o documentário oficial de Tóquio 2020, a aclamada diretora japonesa carrega em seu trabalho uma herança dos tempos de atleta
Talvez a delicadeza das atuações e a profundidade da narrativa de filmes como O Segredo das Águas e O Sabor da Vida não transpareçam a condução de uma ex-esportista ágil e rápida. Foi uma surpresa descobrir que a cineasta Naomi Kawase era uma exímia jogadora de basquete em seus tempos de estudante. Escolhida pelo Comitê Olímpico japonês para realizar o documentário oficial de Tóquio 2020, a aclamada diretora, inclusive, carrega em seu trabalho uma herança das quadras.
Numa palestra realizada no festival de cinema 4+1, na Cidade do México, Kawase conta que foi durante uma partida que teve um insight profundo. Vendo a contagem regressiva do cronômetro, a cineasta foi tomada por uma tristeza enorme. Centésimo a centésimo, segundo a segundo, a então jogadora se dava conta de que restava cada vez menos tempo para o final. Terminou o jogo aos prantos — não por ter perdido para o time oponente, mas porque havia constatado que o tempo passa.
Uma constatação óbvia, sim. Ela concorda. Mas foi a partir daí que Kawase decidiu fazer um trabalho que pudesse resistir à efemeridade do tempo. A diretora desistiu de seguir carreira profissional no basquete e se pôs a desenhar. Queria desenhar pontes para deixar algo sólido e duradouro no mundo e, para isso, teria que cursar uma faculdade de belas artes. Seus professores falavam que ela só teria chances de ser aceita no curso se conseguisse desenhar perfeitamente uma maçã. Mas sua maçã tinha imperfeições: desenhava da forma como enxergava as coisas, não da forma como elas lhe eram impostas. Achou tudo muito entediante e seu interesse em desenho acabou dando lugar ao interesse por filmes.
Naomi Kawase é, hoje, um dos principais nomes do cinema contemporâneo japonês. Tendo em seu currículo temas como luto, abandono infantil e o tratamento de pessoas com deficiência na sociedade, o olhar autoral e questionador da diretora provoca grandes expectativas em torno do documentário financiado pelo governo japonês.
Em entrevistas concedidas recentemente, Kawase já adiantou que abordará a opinião pública contrária à realização do evento. Entre as mais de 300 horas de material captado, estão depoimentos de equipes médicas que trabalham na linha de frente no tratamento de pacientes com Covid-19 e de funcionários esgotados que atuam no controle de passageiros do aeroporto de Haneda, atendendo os protocolos impostos pela pandemia, muitas vezes sem comer ou dormir direito. A maçã imperfeita já daria sinais do que viria pela frente.
Imagino que as chances de desagradar o Comitê japonês sejam grandes. Mas ao contratar Naomi Kawase para fazer o filme, o cliente logo foi alertado da imposição da cineasta: ela assumiria o projeto desde que tivesse liberdade para seguir com seu olhar, fazendo algo que “só Naomi Kawase pudesse fazer”.
Para o retrato de uma edição dos Jogos Olímpicos totalmente atípica, a cineasta pretende entregar com originalidade uma obra que terá o potencial de se tornar um registro histórico deste momento. Sobre o que ela espera do resultado, percebemos a importância de seu aprendizado nas quadras de basquete: “Gostaria que seja uma obra que perdure, mesmo depois de 50 ou 100 anos”.
Piti Koshimura mora em Tóquio, é autora do blog e podcast Peach no Japão e curadora da Momonoki, plataforma de cursos sobre o universo japonês. Amante de arquitetura e exploradora de becos escondidos, encontra suas inspirações nos elementos mundanos. (@peachnojapao | @momonoki_jp)