Perrengues e desafios na escalada ao topo do Monte Fuji
Foram 11 horas noite e madrugada adentro para completar a subida, somadas a 6 horas de descida, a tempo de assistir ao tão aguardado nascer do sol
“Piti, amanhã vou escalar o Monte Fuji e estou te avisando caso aconteça alguma coisa comigo”. Quando recebi essa mensagem da Nina Takahashi, tratei logo de tranquilizá-la. Se eu, sem nenhum preparo físico especial, consegui chegar no topo da montanha mais alta do Japão, a pessoa mais em forma que conheço certamente o faria sem maiores preocupações.
Nina, que também mora em Tóquio, é minha professora de flex, tipo de treino que ela mesma criou combinando calistenia, pilates, yoga e alongamento. Desde os 10 anos pratica atividades físicas intensamente, tendo se dedicado a diversas modalidades como kung fu, dança e circo. Hoje, aos 30, mantém uma rotina diária de treinamento de pelo menos 2 horas, sem contar com as 3 ou 4 aulas que oferece online, em que acompanha seus alunos nos exercícios.
O que não sabia é que Nina, junto com um grupo de amigos, faria a trilha mais difícil para atingir o alto dos 3776 metros do majestoso Fuji. Das 4 rotas existentes para chegar no topo, Gotemba é a mais longa e com maior variação de elevação, começando a 1445 metros de altitude — enquanto as demais começam a 2000 ou 2400 metros. Também é a trilha menos popular. Em 2019, Gotemba foi escolhida por apenas 12 mil montanhistas, enquanto Yoshida, a rota que fiz, foi desbravada por 150 mil pessoas.
Diferente de mim, que fui com um All Star descoladinho (era o que tinha), Nina providenciou equipamentos apropriados como bastões de trekking, botas para trilhas, gaters (espécies de polainas que impedem a entrada de pedras no calçado), jaqueta corta-vento, luvas, mochila com suprimentos e tudo mais como manda o figurino. Mas, mesmo com todo o preparo, ela teve que lidar com alguns desafios. Por conta de uma erupção do Monte Fuji de séculos atrás, a trilha de Gotemba é coberta por uma areia vulcânica fina e cortante, que, acumulada, exerce uma força contrária à escalada. A cada dois passos, a instrutora conta que recuava meio passo por causa da resistência do próprio solo. Ficar parada para descansar, então, significava andar para trás.
Além disso, a altitude e o ar rarefeito tornaram a escalada ainda mais difícil. Nina diz que foi importante o grupo estar munido de pastilhas que facilitam a oxigenação do corpo, mas se arrependeu de não ter levado cilindros de oxigênio. Na trilha Gotemba, sem tantos postos de reabastecimento ao longo da subida, como os que vemos na trilha Yoshida, é importante ir com a mochila cheia — o que significa bons quilos a mais para carregar nas costas.
O visual monótono da rota também não foi dos mais estimulantes. Depois de algumas horas do início da subida, ela já estava arrependida. Não ajudou em nada os seus gaters rasgarem, deixando a passagem livre para a areia cortante entrar pelas botas.
Sobre manter a motivação em meio aos perrengues, Nina exalta a importância de estar em grupo, que foi guiado por um atleta experiente. Markos Toshio, que já havia escalado a montanha outras vezes por outras rotas, monitorava o ritmo do pessoal, controlando a duração das pausas, atento para que o nível de energia não caísse.
Foram 11 horas noite e madrugada adentro para o grupo completar a subida, somadas a 6 horas de descida. Só pararam para descansar lá em cima, no topo, onde conseguiram chegar a tempo de assistir ao tão aguardado nascer do sol — um objetivo clássico da escalada do Monte Fuji. Exausta e arrasada por tantos percalços, porém, ao ver os primeiros raios do dia do alto do maior ícone do Japão, Nina admite que chegou a pensar: “poderia ter visto da janela de casa”.
Mas quando se deu conta do feito e da beleza única do momento, bateu o sentimento de superação. Quatro quilos e uma unha do pé a menos, 6 bolhas a mais: nunca havia passado por uma experiência física e emocional tão extenuante e dolorosa. A partir da conquista, passou a dar mais valor às pequenas coisas do dia a dia, como comida, banho e a possibilidade de usar o banheiro a qualquer hora.
Apesar de todos os perrengues, Nina recomenda, sim, escalar o Monte Fuji — desde que não seja pela Gotemba. Para minha surpresa, ela deve repetir a dose ainda neste verão para ver como é a experiência indo por outra trilha. Contente e aliviada por ter já riscado esse item da minha lista de afazeres no Japão, quando vejo esse empenho da Nina, penso: espírito de atleta é, realmente, outra coisa.
Piti Koshimura mora em Tóquio, é autora do blog e podcast Peach no Japão e curadora da Momonoki, plataforma de cursos sobre o universo japonês. Amante de arquitetura e exploradora de becos escondidos, encontra suas inspirações nos elementos mundanos. (@peachnojapao | @momonoki_jp)