A Polícia Federal – sempre ela – não apenas desvendou um crime que se encontrava há longos 6 anos sem solução, mas também
descortinou uma inusitada associação entre o crime organizado (pela violência assinalada e pela participação de policiais civis e militares) e a delinquência institucionalizada (pelas conexões com corrupção sistêmica e pela autoria de um deputado federal e um membro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro).
A trama engendrada – por agentes públicos e políticos do alto escalão do Estado do Rio de Janeiro – para eliminar a vereadora Marielle Franco teve modus operandi de máfia ítalo-americana com suporte político de delinquência institucionalizada (crime do andar de cima).
O Rio de Janeiro mostrou-se por inteiro como um exemplo acadêmico do crime institucionalizado, cometido por plataformas estabelecidas dentro do poder, por atores nucleares, de forma estruturante e com o Diário Oficial como sua arma mais poderosa. Aliás, é o que vem ocorrendo há décadas.
Percebemos, contudo, no caso da execução de Marielle, que esses grupos foram além dos desvios de verbas de estatais ou de fraudes em licitações de obras e de serviços públicos. Afinal, os crimes do colarinho branco são de difícil detecção e não preveem reprimendas penais suficientemente severas, além de extremamente lucrativos. Isso sem falar na blindagem política que seus perpetradores normalmente detêm.
O que estamos vendo agora, contudo, são atores do crime institucionalizado se associarem às facções e milícias, por intermédio de policiais civis e militares desviados, que se mimetizam com milicianos. A ligação das duas morfologias foi operada por policiais corruptos, justamente por transitarem entre os dois estratos da criminalidade.
Os autores intelectuais do homicídio da vereadora operaram uma aproximação (improvável) com um andar abaixo, isto é, o crime organizado, que atua com o ingrediente da violência. E foi justamente nesse estágio que a corrupção policial aderiu ao projeto criminoso. É exatamente nessa estação que um ex-PM e um delegado da Polícia Civil embarcam no trem da criminalidade política…
Normalmente as estruturas de crime institucionalizado preferem não se envolver com o crime organizado, pois milícias, tráfico de drogas e homicídios têm penas altas, e materialidade e autoria de fácil comprovação.
Mas o Rio atingiu um nível de descontrole tão profundo que os criminosos da política se associaram aos criminosos violentos das facções, mesmo com o risco das penas mais gravosas. O lucro e a certeza de “estar tudo dominado” foram determinantes para essa joint venture ocorrer.
O mais incrível é que no Rio de Janeiro tanto a Polícia Civil como a PM, como demonstrou cabalmente esse caso, aparentemente mais atrapalham do que ajudam, tamanho é o comprometimento de um número considerável de seus quadros. E também pela influência política nessas instituições, principalmente na PM.
Merece registro especial que no assassinato de Marielle foram maiúsculos os protagonismos de um policial militar (deu os tiros, executando as vítimas) e de um policial civil (planejou o crime e tomou medidas de ofício para que a investigação não chegasse a lugar algum). E esse policial civil não era qualquer um, era nada mais nada menos do que o próprio chefe da instituição, cuja escolha e nomeação pertence a quem governa o estado.
E a trama foi posta em prática por ambos os policiais, sob ordens de um deputado federal e um conselheiro do TCE, na mais despudorada conjunção carnal do crime institucionalizado com a delinquência organizada já observada até hoje.
Com essa sequência de governos comprometidos no Rio, obviamente não houve nenhuma iniciativa de modernização das polícias, nem de depuração de seus quadros, pelo contrário, aparentemente os piores, os mais venais e os mais comprometidos com o crime foram guindados às posições de comando.
A influência política não deixa a Polícia Civil do Rio respirar e se transformar, mesmo com a entrada de quadros mais jovens, preparados e dispostos a funcionar bem. Eu mesmo presenciei essa asfixia das novas gerações de autoridades policiais – que entraram na instituição bastante motivados e promissores.
Cabe aqui questionar como a própria existência da PM se mostrou instrumental para o nascimento e fortalecimento do fenômeno das milícias no Rio de Janeiro. Talvez, sem as PMs nem tivéssemos as milícias como se apresentam nos dias de hoje. É bom lembrar que a base formadora das milícias foi, a princípio, uma mão de obra absorvida de policiais militares expulsos da corporação. Em seguida, um número considerável de PM’s na ativa aderiram às milícias, tamanho os ganhos ilegais e a certeza de impunidade.
O próximo passo desse casamento lucrativo entre a alta corrupção e os crimes de sangue das facções e milícias será o financiamento de campanhas de políticos que os representarão e defenderão seus interesses – tanto no legislativo como no executivo. E essa leva de “representantes” da criminalidade, num segundo momento, serão capazes de, institucionalmente, indicar e nomear desembargadores, chefes do ministério público estadual e conselheiros do Tribunal de Contas do Estado.
Por fim, o processo de calcificação do crime organizado estará em estágio de desenvolvimento final com a tomada de mercados e setores estratégicos da economia carioca, como combustíveis, produtos farmacêuticos, bebidas, construção civil, etc, pelo crime organizado. Impende aqui ressaltar que tal processo já se iniciou, e que terá auxílio estratégico e endógeno, dos poderes, já muito próximos da captura total do Estado pela delinquência organizada e institucionalizada.
Quando isso acontecer – a marcha dessa calcificação for ultimada – todo e qualquer enfrentamento se tornará inglório. Teremos chegado ao ponto de não retorno no nosso Rio de Janeiro.