A receita política do “vice dos sonhos”
Relações tensas entre presidente e vice são uma constante, como no caso de Bolsonaro e Mourão. Raríssima é a sintonia plena, como a de FHC-Marco Maciel
Jair Bolsonaro é um candidato à reeleição à procura de um partido. E também de um vice. O atual, Hamilton Mourão, prepara a candidatura ao Senado.
O divórcio começou na campanha eleitoral de 2018. Houve momentos em que o candidato criticou o vice por suposta “ofensa a quem trabalha” e, por assessores, chegou a sugerir que continuasse falar em público.
O ex-general Mourão nunca se deixou enquadrar pelo ex-capitão Bolsonaro, sempre disse o que quis. Até o recente episódio de indisciplina no Exército, protagonizado por Bolsonador e o general (na ativa) Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde.
O vice defendeu, em público, punição exemplar ao general delinquente. O presidente pressionou a cúpula do Exército pelo “perdão”. Quando conseguiu, Mourão anunciou-se em silêncio “por disciplina intelectual”.
Relações tensas entre o presidente e o vice são uma constante na história republicana. Talvez, a imagem mais precisa desse tipo de conflito no centro do poder seja a do alagoano Manuel Deodoro da Fonseca, o marechal monarquista que liderou o golpe contra o Império e inaugurou a história da república federativa brasileira.
Ele governou sozinho por um ano. Na primeira eleição constitucional, em 1891, foi confirmado (por 129 votos) e ganhou um vice eleito pela oposição, também alagoano e marechal Floriano Peixoto (por 153 votos).
Aturavam-se na mútua desconfiança. O marechal-presidente, segundo a lenda, dizia dormir “como se estivesse com um sentinela à porta”. Esse governo durou oito meses, até novo golpe de Deodoro, que renunciou em três semanas.
Assumiu o vice, adversário e alagoano Floriano. Governou sozinho, sob estado de sítio, pelos três anos seguintes, entregou o cargo a um civil, o advogado Prudente de Moraes, e morreu seis meses depois.
Na história brasileira prevalece o clima de conflito entre presidente e vice. O caso mais recente foi o de Dilma Rousseff e Michel Temer, que assumiu a cadeira dela depois de um processo de impeachment para o qual alguns do PT, o partido da presidente, ajudaram a desenvolver — por ação ou omissão.
O antecessor, Lula, mostrou ser possível trilhar caminho inverso ao de Dilma e Temer. Sua história com o vice José Alencar, industrial e senador de Minas Gerais, é obra política incomum, simbólica na construção de um governo ansioso por ser reconhecido como moderado. Continham-se nas divergências.
Rara mesmo é a sintonia fina, harmonia plena, demonstrada pelos antecessores, Fernando Henrique Cardoso e Marco Maciel. Conviveram por uma década no Senado, tinham origem e ideias políticas diferentes, mas realizaram uma parceria plena durante oito anos no poder.
Maciel, advogado e professor pernambucano, morreu ontem, aos 80 anos. Liberal convicto, hábil na conciliação, não deixava pergunta sem resposta — principalmente, de jornalistas. Atravessou uma vida na política sem dizer nada passível de gerar conflitos, mesmo quando dizia tudo com o olhar e o sorriso de todos os dentes.
Quanto tentavam cercá-lo com cenários de crise, dizia, em tom suave: “É muito difícil falar sobre hipóteses, embora em política não se possa excluir hipótese alguma”. Previsões? Contava uma historieta pernambucana: “Lá no Recife tinha um jogador, o Ananias, que ao entrar em campo foi surpreendido por um radialista querendo previsão para o jogo. O Ananias respondeu: ‘Meu amigo, prognóstico só final.'”
Ele assumiu 87 vezes a presidência, como interino, durante viagens de Fernando Henrique. Sentou mais tempo na cadeira presidencial do que, por exemplo, Jânio Quadros cujo governo durou de 31 de janeiro a 25 de agosto de 1961.
Em depoimento a Angelo Castelo Branco, autor de Marco Maciel, o artífice do entendimento, resumiu a receita de como se transformar num vice “dos sonhos” — definição de Fernando Henrique: “Acho que talvez eu tenha tido sucesso no cargo por causa da minha atitude de ver o vice-presidente como um parceiro do presidente e não como um concorrente, e muito menos como alguém que conspira porque está querendo ser o presidente. Assim, se no passado, ao longo de mais de 100 anos de República, vimos muitas coisas complicadas acontecerem, comigo a relação sempre foi extremamente aberta, fluida.”