Na sexta-feira passada, Jair Bolsonaro disse a um dos líderes do Centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI): “O orçamento é do governo e do parlamento.”
Ontem, o governo reafirmou no Diário Oficial a decisão de entregar aos aliados no Congresso a gestão de R$ 17,5 bilhões do Orçamento de 2021.
Não é pouco dinheiro num país em agonia fiscal e com a economia combalida pela crise pandêmica.
É quantia equivalente à metade do corte realizado nas despesas com Saúde neste ano, em plena pandemia.
Bolsonaro abdicou de autonomia na administração de um pedaço do orçamento em benefício dos seus novos sócios no poder, os líderes do agrupamento parlamentar conhecido como Centrão.
Escolheu dar-lhes o máximo, em troca de apoio em votos nos plenários da Câmara e do Senado. A aliança está montada na perspectiva das eleições gerais do ano que vem. Se vai sobreviver, nem eles sabem.
A portaria assinada ontem pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Flavia Arruda (Secretaria de Governo) acaba por legitimar práticas questionáveis sobre a gestão de uma fatia orçamentária.
Os líderes do Centrão decidem onde as verbas federais serão aplicadas e em quais projetos. Proliferam alertas sobre a falta de transparência nesse processo de decisão.
Não há clareza sobre os organismos federais que enviariam o dinheiro aos Estados e Municípios, os meios utilizados (transferências, convênios etc), os projetos escolhidos, os parâmetros de custos, os agentes intermediários e os beneficiários.
Somam-se evidências de coisas estranhas no horizonte. Desde o ano passado têm sido frequentes os casos de parlamentares premiando prefeitos dos seus distritos eleitorais com máquinas.
O problema é que as compras dos equipamentos ocorre a preços acima da tabela de mercado. Exemplo: paga-se R$ 600 mil pela motoniveladora de R$ 300 mil.
Proliferam mistérios. Como o de Gameleira de Goiás, cidade de 3,2 mil habitantes registrados no último Censo realizado há onze anos — o que estava previsto para este ano foi suspenso depois do corte de mais de 95% na verba do IBGE decidido entre o governo e o Centrão.
Gameleira fica a pouco mais de 150 quilômetros de Brasília. É autêntica obra da fé cristã.
Nasceu no início dos anos 60 do século passado, durante uma drástica seca que mobilizou famílias de agricultores da região. Eles foram rezar num morro onde havia uma cruz., e quando voltaram, choveu — segundo a lenda.
Agradecidos, resolveram erguer uma capela em terreno plano, em volta de uma gameleira, árvore útil da madeira ao látex da casca do fruto, usado como vermífugo caseiro. O distrito virou município na virada do milênio e permanece entre os mais pobres.
Gameleira viu-se abençoada no orçamento federal com uma verba de R$ 20 milhões, equivalente a tudo que a prefeitura consegue arrecadar (80% via repasses estaduais) para manter as portas abertas durante um ano.
Paradoxalmente, essa benesse fortuita não foi iniciativa explícita de nenhum parlamentar goiano, mas de um personagem que, politicamente, nada tem a ver com a região e cuja base eleitoral está a 2.410 quilômetros de distância, em Porto Velho: o senador Marcio Bittar (MDB-RO).
Bittar está no centro da confusão orçamentária patrocinada por Jair Bolsonaro e o Centrão. Como relator do orçamento ficou responsável por um conjunto de emendas parlamentares pouco transparentes que somam a bolada de R$ 17,5 bilhões.
Gameleira não desvendou o mistério mas, também, ainda não viu a cor do dinheiro presenteado. Seus habitantes seguem acreditando que a fé remove até montanhas orçamentárias.