Vitor Hugo de Araújo Almeida, deputado federal eleito pelo Partido Liberal de Goiás, sabia o que fazia quando apresentou uma proposta de anistia ampla, geral e irrestrita para crimes políticos, relacionados ou praticados por motivação política, cometidos “por cidadãos indignados” — na sua definição — com a derrota de Jair Bolsonaro para Lula.
Ela deve ser analisada hoje na Comissão de Constituição e Justiça, com previsão de votação até o fim do mês. Se aprovada, poderá receber alterações no plenário da Câmara a um artigo (o 3º) que anistia, também, restrições de direitos “impostas pela Justiça Eleitoral ou Comum” em processos ou inquéritos contra “a livre manifestação do pensamento”.
Eventual emenda de “aperfeiçoamento” da redação desse trecho garantiria trânsito legislativo para a anistia de Bolsonaro, que ficou inelegível até 2030 por sentença do Tribunal Superior eleitoral.
Major Vitor Hugo, como é conhecido, protocolou o projeto de lei na Câmara às 11h35 da manhã de quinta-feira, 24 de novembro de 2022.
A seis quilômetros de distância, no Palácio da Alvorada, Bolsonaro se reunia com os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Estava acompanhado pelo ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid, que, preso, faria um relato à Polícia Federal em depoimento.
Recluso no Alvorada desde o fracasso eleitoral, Bolsonaro invocou sua condição de chefe constitucional das Forças Armadas para cobrar a adesão dos comandantes à sua permanência no poder.
A fórmula previa anúncio do cancelamento do resultado das urnas apurado três semanas antes, quando Lula venceu a disputa por uma diferença de 2,1 milhões de votos (1,8% do total).
Suspensa a posse no 1º de janeiro de 2023, seriam convocadas novas eleições. Elas aconteceriam dentro das “quatro linhas” balizadas por uma intervenção governamental na Justiça Eleitoral. O rascunho de um decreto apreendido pela polícia com o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, com cópia arquivada no telefone do coronel Cid, estabelecia até a prisão de juízes do Supremo Tribunal Federal que, na época, integravam o TSE.
Na versão do ajudante de ordens, o almirante Almir Garnir dos Santos reagiu com entusiasmo e colocou-se “à disposição” de Bolsonaro. O brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior não gostou e questionou “inconstitucionalidades”. O general Marco Antônio Freire Gomes se opôs com um enfático “não” sem o Exército, o plano estava liquidado.
Os detalhes das conversas de Bolsonaro com os três comandantes estão sob sigilo em inquérito no STF, cuja conclusão está prevista para dezembro.
É pouco provável que o então deputado Vitor Hugo não soubesse do rumo do governo naquele final de novembro. Major Vitor Hugo elegera-se deputado federal, com 31,1 mil votos, na onda do antipetismo que em 2018 premiou Bolsonaro com a presidência.
Era um político raro pelo currículo de consultor concursado na Consultoria Legislativa da Câmara e graduação no Exército. Bolsonaro o escolheu como o seu primeiro líder na Câmara (2019 a 2020). Na função de consultor legislativo em que continua absorvera a rotina parlamentar. Nos 21 anos de serviço no Exército recebera graduação em paraquedismo, na infantaria de selva e em operações especiais.
Seu projeto previa anistia para crimes políticos, relacionados ou praticados por motivação política, cometidos a partir de 30 de outubro, dia da derrota de Bolsonaro. Essa limitação temporal excluía outros delitos passíveis de punição.
Entre eles, uma reunião na presidência em que se discutiu o adiamento do segundo turno. O então chefe do Gabinete Institucional de Segurança (GSI), Augusto Heleno, disse em audiência no Senado que não assistiu, e dela nunca ouviu.
Logo foram anexadas outras propostas. Uma era do ex-policial rodoviário José Medeiros, eleito deputado pelo Partido Liberal do Mato Grosso. O projeto (nº 2.954) estabeleceu 1º de junho de 2022 como ponto de partida para a anistia ampla, geral e irrestrita.
Em tese, liquidaria a causa da ação julgada pelo TSE em que Bolsonaro ficou inelegível: a reunião da segunda-feira 18 de julho de 2022 com embaixadores, no Palácio da Alvorada, quando ele apresentou falsas evidências de manipulação dos resultados da eleição que aconteceria 90 dias depois.
Poderia abranger, também, os encontros presidenciais sobre adiamento do segundo turno, em outubro, e anteriores, como o da segunda-feira 29 de agosto, com militares e civis convidados, quando se discutiu um “movimento” para manter Bolsonaro no poder. O almirante Garnier e o então candidato a vice-presidente Walter Braga Netto impressionaram a audiência por suas exaltações “patrióticas”.
Na essência, o jogo marcado para hoje na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara pretende ser um ensaio para futuras cenas de rebeldia parlamentar contra o Supremo Tribunal Federal. Em nome da “livre manifestação do pensamento” projeta-se uma nova rota de conflito institucional.
As perdas, como sempre, tendem a ser coletivas. Alguns seriam beneficiados, ainda que até agora sequer tenham sido denunciados: receberiam a garantia antecipada de perdão aos crimes cometidos na conspiração para um golpe de estado.
Se der tudo certo, é possível que a eleição de 2026 acabe transformada numa revanche Bolsonaro x Lula. Há torcida na oposição e no governo. O preço político: a legitimação da impunidade.