O Brasil mudou de rumo na guerra às drogas. Pela primeira vez, houve reconhecimento e ação institucional efetiva para conter os danos do desastre provocado pela política de combate aos usuários, que tem incentivado a lotação dos presídios, estimulado a corrupção policial e aumentado o lucro e o poder do crime organizado.
É notável que tenha acontecido pela simples lembrança da existência de uma Constituição a ser obedecida e que ela proíbe desvios institucionais como os legitimados na política nacional antidrogas, com a repressão estatal igualando usuários e traficantes.
O Supremo Tribunal Federal foi prudente ao decidir que não é crime o porte de maconha para consumo próprio. Seguiu a receita de cautela atribuída ao senador gaúcho Pinheiro Machado, influente personagem da República Velha. Ao ver multidão em protesto diante do Legislativo, no Rio, o então vice-presidente do Senado teria dito ao condutor de sua carruagem: “Siga em frente, mas nem tão devagar que pareça afronta nem tão depressa que pareça medo”.
Dezoito anos atrás, o Congresso aprovou uma legislação com medidas para prevenção do uso indevido de drogas, entre elas a maconha, prescrevendo atenção de saúde aos usuários. Também estabeleceu normas para repressão à produção e ao tráfico ilícito. Distinguiu o uso do tráfico. Porém, deixou indefinida a fronteira entre usuário e traficante.
Governo e Congresso atravessaram quase duas décadas sem se preocupar com a própria omissão. “É necessário uma decisão sobre isso”, reconheceu Lula, que sancionou a lei (nº 11.343) na quarta-feira 23 de agosto de 2006. Curiosamente, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, demonstraram mais preocupação com a preservação do “espaço” do Legislativo do que com a necessária e sensata correção de um histórico desvio institucional, responsável por levar o sistema judicial à beira do colapso.
“País muda de rumo na guerra às drogas para conter os danos de um desastre”
Nos últimos dezoito anos, quadruplicou-se o número de pessoas encarceradas (644 300 no ano passado). E produziu-se um crescimento exponencial dos gastos com a segurança pública, a Justiça criminal e com a rede de 1 400 presídios — o custo já beira 1 bilhão de dólares anuais (5,5 bilhões de reais) para os contribuintes de São Paulo e do Rio. Em cada dez presos, seis são pardos, pretos e pobres da periferia, informa o Conselho Nacional de Justiça. E 28% estão ali em regime “provisório”, à espera de uma decisão judicial que pode demorar quatro anos.
O resultado é um esplendor do fracasso. A matança aumentou (47 000 homicídios em doze meses). As máfias locais cresceram, beneficiadas com mão de obra a custo zero nas prisões, e avançam no vácuo do Estado em áreas vitais à logística de transporte até os portos atlânticos, como nas cidades à margem das nove calhas fluviais da Amazônia. Nenhum segmento da economia nacional foi mais dinâmico, na última década, do que as transnacionais verde-amarelas do crime organizado. Consolidaram posição de mercado em cinco continentes, mostra o mapa-múndi da ONU sobre o narcotráfico.
A opção estatal pela guerra às drogas com foco nos pretos, pardos e pobres tem raízes nas teorias raciais infladas no choque de interesses do ciclo final da escravidão. Os arquivos do Ministério da Saúde guardam coletâneas de estudos produzidos para justificar o controle social via criminalização do uso da maconha. O “fumo de negro” foi associado à loucura e até a uma suposta revanche dos afrodescendentes, como propagou o médico e político sergipano José Rodrigues da Costa Dória.
A ênfase na repressão militarizada, a partir dos anos 80, moldou o aparato de segurança pública. A prioridade à caça aos usuários eliminou a investigação sobre as máfias e suas finanças (a experiência da força-tarefa paulista Gaeco contra o PCC é bem-sucedida porque inverteu essa lógica). Como efeito colateral, disseminou a espionagem em órgãos sem poder legal de investigação, estimulou a politização dos quartéis e a partidarização dos policiais militares. Fabricou excessos como uma “bancada da bala” no Congresso, agora esteio parlamentar do lobby dos jogos de azar. Ao lado, como advertem juízes e pesquisadores, florescem grupos políticos vinculados ao crime organizado.
A mensagem do Supremo ao Congresso foi prudente, direta e cristalina: uso de drogas não é crime, é problema de saúde pública, passível de sanções alternativas à prisão. Manipular essa decisão para induzir um conflito institucional é apostar na aceleração da liquefação política.
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899