Fidelidade não é uma característica de Jair Bolsonaro. Já passou por oito partidos, fracassou na criação de um novo e, a 14 meses da eleição, ainda não conseguiu ser aceito em nenhum.
Infidelidade é uma peculiaridade do Centrão, agrupamento partidário que sustenta o governo no Congresso.
Centrão e Bolsonaro desconfiam um do outro, num exercício permanente de defesa contra a traição.
Há dez dias, ele queria aprovar na Câmara um projeto de emenda à Constituição para retroceder à era do voto impresso.
Precisava de 308 deputados votando “sim”, em dois turnos. Obteve 229 a favor, 218 contra e uma abstenção.
Debulhado o resultado, o governo ficou 26% abaixo do mínimo necessário (308) para aprovar a emenda. Ou seja, Bolsonaro quando tentou mudar a Constituição, só teve votos suficientes para aprovar um simples projeto de lei (metade mais um dos presentes na sessão).
Partidos do Centrão foram decisivos. O PP do ministro Ciro Nogueira (Casa Civil) e o PL da ministra Flavia Arruda (Secretaria de Governo) marcaram posição com 36 discursos contra o projeto, além de registrar 18 ausências, o que na votação de emendas constitucionais se contabiliza como voto contra.
Poderia ter sido pior, não fossem os 40 votos que lhe foram presenteados por deputados da oposição.
Habituado a fazer política com fígado, Bolsonaro atravessou a semana passada decidido a dar um tranco no Centrão.
Na sexta-feira, o governo anunciou veto presidencial a dois tipos de emendas parlamentares impositivas ao Orçamento. Somam previsão de gastos de R$ 18 bilhões no ano eleitoral de 2022, e são conhecidas como de relator e de bancada.
A maior parte da despesa (cerca de R$ 15 bilhões) está na conta das chamadas emendas de relator-geral do Orçamento, inovação introduzida no ano passado num acordo de Bolsonaro com o Centrão.
Funciona como um orçamento paralelo, controlado diretamente pelos líderes do Centrão. Eles privilegiam alguns parlamentares em cotas de verbas federais. Informam aos ministérios o valor e o destino do dinheiro a ser liberado.
A transação é direta, sem controle muito menos transparência — “a partir de dezenas de ofícios, sem que sejam assegurados dados abertos em sistema de registro centralizado que permitam a transparência ativa, a comparabilidade e a rastreabilidade por qualquer cidadão e órgãos de controle”, constatou o tribunal de contas.
Isso permite aos parlamentares alinhados ao Centrão o livre manejo de recursos federais para investimento em pequenas obras nas áreas estratégicas aos respectivos planos de reeleição, distorcendo a distribuição regional de recursos do Orçamento da União.
Num exemplo do ano passado, a região Norte recebeu verbas federais — via emendas de relator — de valor proporcional por habitante cinco vezes maior que o Sudeste, embora sua população seja cinco vezes menor.
Se vetasse esse orçamento paralelo, como anunciou na sexta-feira, Bolsonaro cortaria o fluxo de dinheiro do governo que irriga as campanhas eleitorais dos partidos integrantes do Centrão.
Eles são sócios no poder, mas têm prioridades distintas: o presidente quer se reeleger, os partidos querem garantir a sobrevivência, elegendo bancadas no Congresso e nas assembleias estaduais.
O tamanho das bancadas em 2022 é decisivo ao futuro de cada um, para cumprir exigências de uma legislação focada na redução do número de partidos (há 35 registrados e outros 78 na fila da Justiça Eleitoral). Precisam eleger o máximo possível de candidatos ao Legislativo para ter acesso a fundos públicos e a tempo de propaganda no rádio e na tevê.
O anúncio do veto presidencial delineou uma crise entre Bolsonaro e o Centrão. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e os ministros Ciro Nogueira (PP-PI) e Flavia Arruda (PL-DF) se esforçaram para convencê-lo a recuar.
O veto presidencial seria ineficaz, pois acabaria derrubado na Câmara. E, caso insistisse, não haveria retorno — “a República cairia”, conforme uma descrição das conversas obtida pelos repórteres Andrea Jubé e Fabio Murakawa, do Valor.
Bolsonaro capitulou. Voltou atrás na decisão anunciada e sancionou o Orçamento de 2022 com a previsão de pagamento de cerca de R$ 15 bilhões em emendas de relator.
Líderes do Centrão renovaram promessas de empenho na aprovação de projetos considerados relevantes para o governo.
Expuseram a fragilidade dessa aliança, sem garantia mútua de adesão automática e incondicional. Continuam juntos, até à próxima crise.