Lula ainda era Luiz Inácio e celebrava a maioridade estreando uma gravata escura para receber o diploma de torneiro mecânico na Escola Senai do bairro Ipiranga, em São Paulo — “a melhor coisa que aconteceu na minha vida”, repetiria décadas depois aos biógrafos, entre eles Fernando Morais.
Naquele março de 1963, 8 000 quilômetros ao norte, também começava a mudar a vida de uma mulher e cinco homens, músicos em busca da melodia da sorte na Manhattan de um mundo em Guerra Fria.
Na segunda-feira 18, eles atravessaram a portaria do 112-Oeste, da Rua 48, plantado entre prédios cujas fachadas estampavam cartazes de linhas pretas e amarelas — aviso do Departamento de Defesa dos Estados Unidos sobre refúgio possível, embora duvidoso, na emergência de um ataque nuclear.
Tom Jobim, João e Astrud Gilberto, Milton Banana, Tião Neto e Stan Getz lutavam para apresentar a bossa nova fora do Brasil. Confinaram-se no estúdio A&R gravando um disco produzido por Creed Taylor para a Verve Records. Foram dois dias de desarmonia entre João do violão e Getz do saxofone. O baiano explodiu na impaciência, em português: “Tom, diga a esse gringo que ele é burro”. O carioca Jobim girou na banqueta do piano e traduziu: “Stan, o João está dizendo que o sonho dele sempre foi gravar com você”.
Foi um dos grandes momentos da diplomacia brasileira nos tempos da Guerra Fria. Lançado em março seguinte, quando o Brasil submergia na ditadura, o disco Getz/Gilberto abriu o mercado dos EUA e da Europa para a música brasileira. Na voz da estreante Astrud, vertida em inglês, Garota de Ipanema multiplicou-se em incontáveis versões, de Frank Sinatra a Madonna. Canção e álbum bateram obras dos Beatles (I Want to Hold Your Hand) e de Louis Armstrong (Hello, Dolly!) no Grammy de 1965.
A habilidade nas negociações entre seis pessoas trancafiadas entre quatro paredes, naquelas 48 horas em Nova York, resultou numa mensagem made in Brazil revolucionária na música mundial. Como Pelé no esporte, a bossa nova no jazz ajudou a moldar a identidade e o poder de influência do país.
“Lula inebriado e Itamaraty errático fazem diplomacia surrealista”
O mundo de Lula é outro, seis décadas depois. Profissões como a de torneiro mecânico e os complexos industriais lastreados em combustíveis fósseis foram soterrados na poeira do tempo. O Brasil, no entanto, continua a patinar na periferia do capitalismo, mais dependente e vulnerável na era dos semicondutores e da nanotecnologia — essenciais para a modernização da produção, do trabalho e da remuneração nas cidades e no campo.
A sofisticação tecnológica impõe pensamento crítico e criatividade aos indivíduos no trabalho, às empresas na produção e aos governos nas relações externas. É perceptível neste início de Lula-III que alguma coisa está fora de ordem na política externa. Sobram dissonâncias no Palácio do Planalto, movimentos erráticos no Itamaraty e incoerências na agenda diplomática.
Lula se apresenta inebriado no papel de “pacificador” da guerra de Vladimir Putin na Ucrânia, jogo geopolítico sobre o qual não possui controle ou influência. Suas chances de mediação parecem irrealistas, indicam as conversas recentes com Joe Biden (EUA), Olaf Scholz (Alemanha), Emmanuel Macron (França) e Volodymyr Zelensky (Ucrânia).
Entre outras razões, porque assumiu um lado — o do invasor. Culpa o Ocidente por colocar seus “cachorros” da aliança militar (Otan) para “latir” na fronteira do antigo império que a Rússia tenta restaurar. Se Putin é vítima, o que seria Zelensky, cujo país foi invadido? “Se ele não quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais. É assim” — disse, dias atrás, diante do chanceler alemão no Planalto.
Esse voluntarismo ativista, ou ativismo voluntarista, está condicionado por uma lógica adequada, talvez, aos tempos da Guerra Fria, mas é dissonante com os interesses mais prementes do Brasil. Como no flerte permanente com ditaduras “amigas” da Nicarágua, Irã e Venezuela, entre outras, tende a ter baixo custo político se não gerar retaliações.
Lula inebriado, com o Itamaraty errático no contraponto, resulta numa diplomacia surrealista. O país se arrisca à perda de foco nos objetivos nacionais prioritários e urgentes, como o da mudança da estrutura produtiva na era dos semicondutores e da nanotecnologia. Sem isso, a vitrine da Floresta Amazônica continuará exuberante, mas insuficiente para inspirar uma “bossa nova” na economia.
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Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832