Governo decide pagar para não escolher entre EUA e China no 5G
“A gente não vai entrar no meio dessa guerra”, diz o ministro das Comunicações. País vai pagar por duas redes, e evitar conflito com Washington e Pequim
O governo decidiu não escolher entre as tecnologias de quinta geração (5G) dos Estados Unidos e da China na infraestrutura de telecomunicações. Diante da pressão dos governos americano e chinês, resolveu ficar com dois sistemas operacionais. Vai pagar a mais por isso.
“A gente não vai entrar no meio dessa guerra entre EUA e China”, justificou o ministro das Comunicações, Fábio Faria, ontem na Câmara. “Temos uma situação resolvida com relação ao 5G. Temos restrições apenas na rede privativa do governo, em que colocamos algumas especificações, porque entendemos ser uma rede sensível, mas não na rede ampla.”
A consequência prática dessa decisão será a construção de duas redes de comunicações. Haverá uma para uso geral, baseada na tecnologia 5G, estável e até vinte vezes mais veloz que o padrão existente nas grandes cidades (4G).
Uma outra será montada para uso exclusivo de órgãos públicos. Teria central em Brasília interligada a 26 capitais e, em tese, exigiria aos servidores-usuários um aparelho telefônico específico para acesso. Ainda não tem desenho definido, mas é certo que vai impor um custo adicional aos contribuintes. Algumas projeções indicam que sua construção poderá custar o equivalente a um terço do investimento na rede geral, para usuários comuns e empresas.
A definição da tecnologia dos equipamentos de infraestrutura das redes 5G é razão de disputa geopolítica entre os EUA e a China.
Donald Trump pressionou Jair Bolsonaro a optar pelo sistema americano. Joe Biden insistiu. Nas últimas duas semanas, por exemplo, comitivas de funcionários da Agência Central de Inteligência (CIA) e do Conselho de Segurança Nacional estiveram no Palácio do Planalto para demonstrar a “insegurança” da tecnologia chinesa de 5G.
Como Bolsonaro, muitos em Brasília acreditam na “segurança” da tecnologia, apesar do histórico de espionagem dos EUA no Brasil.
Em 2013, por exemplo, O Globo revelou que a Agência Nacional de Segurança (NSA) manteve em Brasília uma das suas 16 bases de espionagem digital nas Américas, operada em conjunto com a CIA. Havia coleta em massa de dados de telefonia e de correspondência eletrônica de pessoas residentes ou em trânsito no Brasil, assim como empresas instaladas no país.
Os documentos vazados por Edward Snowden, antigo funcionário da NSA, mostravam que em janeiro de 2013 o volume de dados coletados a partir das redes do Brasil (2,3 bilhões em telefonemas e mensagens) só era superado, no continente, pela quantidade levantada pela agência em solo americano, supostamente na vigilância de estrangeiros “de interesse” para a segurança nacional.
A decisão de não escolher entre EUA e a China na rede geral de 5G, como informou o ministro das Comunicações aos deputados, sugere o governo rendido diante de uma realidade incontornável em dois aspectos essenciais.
Um deles é a inédita dependência econômica da China sob Bolsonaro. O comércio bilateral deve superar US$ 120 bilhões neste ano, um crescimento de 20% em relação ao ano passado. As vendas brasileiras para o mercado chinês, basicamente commodities, aumentaram 37,7% no primeiro semestre, em relação a janeiro-junho de 2020.
Outro aspecto é a expansão dos investimentos da China em áreas-chave da economia, de energia e petróleo à infraestrutura digital. Cerca de 40% dos equipamentos que fazem funcionar a rede brasileira de internet incorporam tecnologia chinesa (Huawei).
Tentou-se convencer as operadoras de telecomunicações a migrar para a tecnologia americana. Elas responderam com a inviabilidade de aumentar seus custos em até 30% do previsto — como ocorreu em alguns lugares da União Europeia. Somente nas áreas urbanas significaria um acréscimo de US$ 16 bilhões numa empreitada de investimentos estimados em US$ 48 bilhões para implantação da rede 5G.
O governo, então, resolveu transformar a “segurança” em argumento para criação de um negócio paralelo, a construção de uma rede privativa para órgãos públicos. Ela terá exigências específicas, explicou ontem o ministro das Comunicações.
Será restritiva a fornecedores de equipamentos fora do padrão tecnológico americano e da aliança industrial (Open Ran) para arquitetura compatível de redes e equipamentos de qualquer fabricante, exceto chineses. Semana passada, em Brasília, o assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, Jacob Jeremiah (“Jake”) Sullivan, deixou claro o interesse dos EUA na adesão do Brasil a esse pacto industrial.
Bolsonaro passou dois anos hostilizando a China. Recuou. Para não enfrentar os Estados Unidos decidiu impor um custo extra no 5G, o da rede pública “segura”, que será socializado entre os contribuintes.