“Defina objetivos capazes de agregar as pessoas” — ele dizia. “Descubra meios, descritíveis, de alcançar esses objetivos”.
O futebol, achava, era caso exemplar de exercício de liderança, pragmatismo e poder – não necessariamente nessa ordem. Raríssimos, aos seu olhos de torcedor, reuniam todas essas virtudes.
Pelé superava. Teve papel relevante na sua contratação pelo New York Cosmos. “Ele me convenceu a apoiar o futebol na América”, contou o craque tempos depois, lembrando o argumento político que ouviu: “Tenho certeza que sua presença nos Estados Unidos vai contribuir significativamente para estreitar os laços com o Brasil”. Num domingo de 48 anos atrás, 15 de junho de 1975, Pelé estreou no Cosmos.
O fascínio pelo futebol surgiu quando Heinz morava em Fürth, cidade da Bavária, na Alemanha, onde nasceu há um século. Era um lugar perigoso para crianças de origem judia numa época de ascensão do nazismo, mas ele driblava a vigilância familiar para assistir aos jogos do time de Fürth.
A guerra o levou para os Estados Unidos. Heinz virou Henry Alfred e, na diplomacia, se tornou um dos personagens mais influentes do século passado. Ganhou um Nobel da Paz (1973) e entrou na galeria do Comitê Olímpico Internacional. Em 1994 estava no conselho da Fifa, na controvertida presidência de Joseph Blatter, e mergulhou na organização da Copa do Mundo nos Estados Unidos, com a experiência de quem acompanhara quase todas desde os anos 50.
Ele viu na Copa o mapa-múndi dos jogos vorazes da política. Nessa disputa, achava, é possível distinguir o caráter político de cada país. “É jogo muito tático e em sua complexidade se converte em fascinante reflexo das atitudes nacionais” — escreveu em 1986.
“Por que nenhuma equipe de país comunista (exceto a Hungria, em 1954) chegou às semifinais ou à final da Copa?” — provocou. E respondeu: “Planejamento excessivo, estereotipado, destrói a criatividade indispensável para o futebol eficaz.”
Aos 91 anos, “Heinz” de Fürth, celebrado como Henry Kissinger, quis assistir à Copa de 2014 no Brasil.
Consultas informais foram feitas ao governo brasileiro, com a esgrima da sua credencial de conselheiro da cúpula da Fifa. Dilma Rousseff, talvez, tenha torcido o nariz mas não atrapalhou.
No escritório do 33º andar de um edifício no centro de Manhattan, no entanto, alguém lembrou dos riscos que ele correria em solo brasileiro. Prisão, eventualmente, porque quase uma dezena organizações civis, ativistas internacionais, faziam plantão permanente, mobilizadas com esse objetivo.
Ex-conselheiro de política externa dos presidentes dos EUA dos anos 50 aos 70, Kissinger foi acusado de cumplicidade em crimes de estado no Chile e no Uruguai (1973), entre outros lugares.
No comando do Departamento de Estado apoiou ditaduras, algumas sanguinárias como as da Argentina e do Chile. E nesses casos sempre contou com a ativa parceria do regime militar brasileiro.
Suas ações e omissões estão descritas em milhares de documentos já divulgados pelo governo dos EUA. Sabe-se, por exemplo, que na Copa de 1978 Kissinger foi o convidado de honra da Junta Militar que torturava prisioneiros em torno do estádio, em Buenos Aires. No Brasil, ao contrário, nem os governos autoproclamados de esquerda divulgaram os registros das contribuições nacionais para o golpe e a repressão política no Chile, no Uruguai e na Argentina.
Crimes contra a Humanidade são considerados imprescritíveis, também em território brasileiro. Por isso, apesar do passe-livre da Fifa e da CBF, “Heinz” de Fürth virou um torcedor rejeitado na Copa de 2014 no Brasil. Kissinger acabou confinado à tela da televisão da residência de Connecticut, a 150 quilômetros de Nova York, onde morreu nesta quarta-feira (29/11), aos cem anos e seis meses de idade.