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O agro virou ogro

É irônico que a Amazônia seja um problema na era da transição energética

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h35 - Publicado em 19 Maio 2023, 06h00

Lula e empresários do agronegócio ficaram atônitos com a lista de exigências apresentada no início do mês por 27 governos da União Europeia para a assinatura de um tratado com o Mercosul depois de 23 anos de negociações.

No começo do inverno de 2019, festejou-se a conclusão do documento básico, o corpo do acordo. Mas não foi assinado, confirmado pelos governos, nem submetido ao ritual de ratificação parlamentar dos países do Mercosul e da União Europeia. Duas semanas atrás, os europeus resolveram impor novas condições.

São cláusulas “leoninas”, “duras”, “difíceis” e “protecionistas”, definiu o chanceler Mauro Vieira em audiência no Senado na semana passada. Preveem retaliações a crimes ambientais, como o desmatamento, capazes de causar “prejuízos enormes” às exportações do Brasil. A Europa é destino de 40% dos produtos brasileiros e havia perspectiva de aumento significativo nas vendas (20% ao ano) durante a próxima década.

O resultado, porém, é outro adiamento dessas negociações sobre regras comuns de comércio para três dezenas de países, donos de um quarto da riqueza mundial e onde vive um décimo da população mundial — 720 milhões de brasileiros, argentinos, paraguaios, uruguaios e europeus.

A ideia do acordo nasceu na virada do milênio em ambiciosa aposta de cooperação internacional para uma agenda liberal, com laivos de modernidade social, ambiental e de governança com voz ativa de países da periferia do capitalismo. Hoje, desvanece num ambiente de letargia transatlântica, contaminado pela nostalgia nacionalista, quase sempre racista e xenófoba.

Encalhado há mais de 8 000 dias, o tratado Mercosul-União Europeia é, antes de tudo, prova de carência de inteligência nos governos e nas empresas nos dois lados do Atlântico.

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“É irônico que a Amazônia seja um problema na era da transição energética”

Empresários brasileiros tornaram-se reféns do próprio êxito. Mostraram-se capazes de capitanear uma revolução tecnológica, em parceria com o Estado, garantindo três safras anuais e recordes sucessivos de produtividade. Foram protagonistas do mais dinâmico processo de transformação capitalista abaixo do Equador nas últimas três décadas. Na saga da migração sulista para o Centro-Oeste, a partir dos anos 70, proliferam histórias de sucesso. Pequenos produtores de grãos criaram núcleos familiares de bilionários — foi o caso do gaúcho André Maggi, em Sapezal (MT), cujos filhos lideram a produção e a exportação de soja.

O agronegócio no Brasil é responsável por um quarto da produção de riqueza nacional e domina fatias expressivas do mercado mundial de alimentos. No entanto, até agora tem sido incapaz de mudar sua imagem, contrastante, de celeiro de trogloditas desmatadores da grande reserva de floresta tropical que sobrou no planeta. Eles existem. São absoluta minoria, mas conseguiram se impor como porta-vozes do setor em militância por uma lavoura arcaica, mais coerente com o espírito do capitalismo selvagem.

Produtores europeus perceberam a imobilidade política da concorrência e passaram a difundir a arrogância do agronegócio brasileiro, incriminando os empresários brasileiros pela devastação na Amazônia. Resultado: o agro virou ogro, na precisa definição do publicitário Nizan Guanaes.

É irônico que a Floresta Amazônica tenha se tornado um problema, e não uma solução, para o agronegócio numa época de transição econômica — da produção baseada em combustíveis fósseis para a economia “verde”, com gradativa redução nas emissões de carbono.

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O impasse criado nas negociações do acordo Mercosul-União Europeia reflete, em parte, esse drama político-empresarial brasileiro. A prepotência dos europeus fica evidente na ameaça de sanções ao desmatamento no Brasil com base em suas leis de desflorestamento, embora há muito tempo já não possuam áreas para desflorestar. Também transparece na ausência de indicação da arbitragem, sugerindo a própria União Europeia como parte e juízo das causas.

Não há inocentes no jogo do comércio global. O agronegócio brasileiro deveria sair da inércia, mudar a imagem e, rapidamente, desidratar a representação setorial relegada a trogloditas ambientais e militantes radicais, alguns vinculados ao financiamento de conspirações políticas como a que derivou na invasão do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto no 8 de Janeiro.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842

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