O drama de Lula
O pós-operatório será relevante para todos os interessados na eleição de 2026
Lula atravessou a campanha eleitoral em autoengano sobre as dores que sentia no quadril — e não passavam. “A verdade é que estou com essa dor desde agosto do ano passado”, contou na terça-feira (26/9). “Naquela cena (de campanha) que vocês me viam pulando no carro de som, vocês não sabem a dor que eu sentia.”
Foram várias encenações do gênero, antes, durante e depois das eleições. Ele diz que era para “animar as pessoas”, mas seu histórico sugere outra coisa, bem mais pessoal e na fronteira daquilo que paira como uma dramática impossibilidade para os humanos: a tentativa de fuga da biologia.
Quatro primaveras atrás, na sexta-feira 8 de novembro, Lula deixou a prisão em Curitiba e apresentou-se à sétima candidatura presidencial em vídeo direcionado ao público das redes sociais: “Quero dizer para vocês que eu sou um senhor muito jovem. Eu tenho 74 anos do ponto de vista biológico, mas tenho 30 anos de energia e 20 anos de tesão. Tá? Só para vocês ficarem com inveja desse jovem que está falando com vocês… Quero dizer para vocês que tô livre para ajudar o Brasil a sair dessa loucura que está acontecendo”.
Venceu a eleição, ajudou a sepultar a estrambólica quartelada bolsonarista, estabilizou o governo com a incorporação do Centrão, mas não conseguiu suplantar as sequelas do Tempo. Se tudo sair como previsto pela junta médica, é possível que celebre os 78 anos, na sexta-feira 27 de outubro, alternando muletas e andador, depois de ganhar um novo quadril no lado direito com a troca de articulações corroídas por peças de metal e plástico. O risco cirúrgico é considerado baixo, mas a recuperação é reconhecida como complexa.
Lula é um paciente com prontuário pontuado por crises recentes: hipertensão, em 2010; câncer de laringe, em 2011; Covid e forte rouquidão, em 2020 e 2022; e pneumonia, em 2023. Mesmo com dores constantes, resolveu desafiar-se numa maratona de viagens por dezenove países nos últimos oito meses, num ritmo que evoca a inquietude de Isidoro Vidal, personagem do escritor argentino Adolfo Bioy Casares, para quem o cansaço já não servia para dormir e o sono já não servia para descansar.
“O pós-operatório será relevante para todos os interessados na eleição de 2026”
No começo do ano foi obrigado a adiar por duas semanas uma viagem à China por causa de um diagnóstico de pneumonia. As dores impediram-lhe de comparecer ao ritual de oito recepções no exterior e impuseram mudanças abruptas nos roteiros das visitas. Na África do Sul, por exemplo, assessores adotaram a prévia contagem de passos para limitar suas caminhadas. Em Angola e Cuba viu-se forçado a reduzir o número e o tempo dos discursos. Na Índia transferiu reuniões para o hotel em que estava acomodado. Em Nova York, falou na ONU e antecipou o retorno a Brasília.
Lula segue emoldurando o próprio espelho, aparentemente cada vez mais preocupado com retoques na imagem pública da sua capacidade de continuar a empreender, governar e desejar. “Eu tenho 77 anos e me sinto um menino”, repetiu na semana passada. “Quando você tem uma causa e briga por ela, o tempo não passa. O tempo passa para quem não tem uma causa. Quem vive da luta do dia a dia não envelhece.”
Alguns interpretaram como afirmação de amor à vida de um paciente, outros decodificaram mensagem de apego ao poder numa etapa de vulnerabilidade pessoal. A ambiguidade tem sido a força de Lula desde a estreia no chão da política, há 41 anos, quando atravessou o calçadão da Rua das Flores até a Boca Maldita, onde a tradição curitibana recomenda o exercício da liberdade de falar mal de tudo e de todos — a começar pelos amigos. Naquele maio de 1982 era uma figura barbuda pouco conhecida, em cortejo animado por uma banda, acenando para desconhecidos entre faixas de um ignorado Partido dos Trabalhadores, com apenas oito semanas de existência reconhecida pela Justiça Eleitoral. Seis meses depois disputou o governo de São Paulo e, numa proeza, ficou com 10,7% dos votos.
Ao passar o tempo renegando o Tempo (“me sinto um menino”; ou “vocês não vão me ver de andador, de muleta, vão me ver sempre bonito, como se eu não tivesse sequer operado”), informa sobre a permanência do encanto com o poder, mas também indica preocupação com o futuro — a possibilidade de o governo desandar na avidez de ministros candidatos à sua sucessão, quando estará com 81 anos. Lula continuará a ser o principal candidato de Lula, caso as condições políticas e de saúde sejam favoráveis. Por isso, o ciclo pós-operatório no Palácio da Alvorada será relevante para todos os interessados na rodada eleitoral de 2026.
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Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861