O governo se renovou num surrealismo primitivo.
Ontem, Jair Bolsonaro finalmente apresentou suas “provas de fraudes” nas eleições.
Num caso, a única semelhança perceptível entre o sistema de votação e a “prova” estava na aparência do painel da urna eletrônica.
Em outro, se baseou em erros matemáticos cometidos por um autodeclarado acupunturista de árvores.
Horas antes, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e o chefe da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, protagonizaram outra cena surreal
Em tom solene, Rosário anunciou não ter encontrado “irregularidades” num obscuro negócio de compra de 20 milhões de doses de vacina indiana ao preço de R$ 1,6 bilhão, denunciado por servidores da Saúde na CPI da Pandemia — ao contrário do Ministério Público Federal, do Tribunal de Contas da União e da comissão parlamentar de inquérito.
O contrato foi assinado em janeiro, quando o general Eduardo Pazuello comandava o ministério, auxiliado pelo coronel Elcio Franco — atualmente ambos assessoram Bolsonaro na Casa Civil. Baseado em documentos reconhecidamente falsos, embutia corretagem de um grupo privado nacional que, em 2017, havia recebido R$ 20 milhões por medicamentos nunca entregues à Saúde.
Ao lado do chefe da CGU, o ministro Queiroga surpreendeu: embora sendo “regular”, anunciou, o contrato será cancelado.
Rosário aproveitou para dizer que o governo não deve desculpas ou agradecimentos ao servidor da Saúde autor da denúncia, Luis Ricardo Miranda. Ele havia comentado suas suspeitas com o irmão, deputado Luis Miranda (DEM-DF). Ambos apresentaram documentos a Bolsonaro, em março. Nada aconteceu.
Ontem, Rosário fez uma repreensão pública ao servidor que impediu o desperdício de R$ 1,6 bilhão, atestado pela decisão da Saúde de cancelar o contrato: “Canal de denúncia não é procurar irmão nem presidente.” Os registros mostram que o controlador-chefe só demonstrou interesse pelo caso no final de junho, cinco meses depois de assinado o contrato, quando integrantes da CPI acusaram Bolsonaro no Supremo por crime de prevaricação.
Antigo capitão do Exército, Rosário comanda um órgão onde servidores são festejados, com razão, quando impedem estranhas transações como a dissipação de um volume de dinheiro 2,7 vezes maior que o da contratação da vacina indiana.
O governo Bolsonaro ainda não completara oito meses de existência quando, em agosto de 2019, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) anunciou um pregão eletrônico (nº 13/2019) para a compra de mais de 1,3 milhão computadores, notebooks e laptops para distribuição na rede pública de ensino.
A licitação tinha um custo de R$ R$ 4,3 bilhões, corrigido pelo IGPM — equivalente a US$ 877,5 milhões. Os auditores da controladoria demonstraram que estava tudo errado. Num exemplo, a direção do FNDE previa adquirir 30.030 laptops para os 255 alunos da Escola Escola Municipal Laura Queiroz, de Itabirito (MG). Ou seja, 118 máquinas para cada estudante.
Rosário, que reclamou em público do funcionário denunciante da fraude com a vacina, até hoje mantém em segredo os nomes dos responsáveis por um caso de desvio 2,7 vezes maior, desvendado por seus subordinados (clique aqui para obter uma cópia do relatório da CGU).
Ontem, Bolsonaro, Rosário e Queiroga exibiram um governo rompido com a lógica e com os padrões de racionalidade estabelecidos na administração pública.