No início da noite de terça-feira, 25 de agosto de 2020, Jair Bolsonaro recebeu duas advogadas para discutir a defesa de um dos seus filhos parlamentares, o senador Flavio Bolsonaro, numa investigação de desvio de dinheiro público na Assembleia Legislativa do Rio, conhecida como o “caso das rachadinhas”.
Essa reunião no Planalto foi gravada por um dos participantes, Alexandre Ramagem. Na época, ele era chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), hoje é deputado federal e candidato a prefeito do Rio pelo Partido Liberal, onde se abrigam Bolsonaro e o filho senador. Também participou o então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno.
A polícia encontrou a gravação e fez a transcrição, preservada até esta segunda-feira (15/7) quando o sigilo foi retirado pelo juiz Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
É uma conversa pedagógica sobre o lado obscuro do poder. Mostra como o presidente e os dois auxiliares graduados usaram a estrutura do governo na defesa dos interesses privados de um parlamentar sob suspeita de corrupção — no caso, um integrante do clã Bolsonaro, o filho-senador. Também expõe servidores públicos numa teia de ilegalidades.
O resultado é um ambiente onde se permitem quase tudo, inclusive a manipulação, ilegal, de todo tipo de informações sobre pessoas e empresas que supostamente estariam protegidas nos bancos de dados do governo. Na aparência, é tudo em nome de uma suposta luta política. Na realidade, é apenas defesa de interesses particulares.
O inquérito sobre o “caso das rachadinhas” começou pouco antes da eleição presidencial de 2018, atravessou o governo e continua pairando sobre o clã Bolsonaro como episódio simbólico de corrupção no baixo clero da política.
Dois meses antes dessa reunião no Planalto, a polícia havia prendido um assessor de Flavio, o ex-policial militar Fabrício Queiroz, antigo auxiliar do pai-presidente. E três meses depois desse encontro, a agência federal de espionagem iniciou “levantamentos” sobre alguns auditores da Receita Federal. Eles entraram no alvo como responsáveis pelo relatório financeiro que deu origem à investigação sobre o desvio de dinheiro público em gabinetes parlamentares da assembleia do Rio, entre eles o senador-filho de Bolsonaro.
Não se sabe quem convocou a reunião no Planalto, mas fica claro que as advogadas estavam no gabinete presidencial atuando na defesa dos interesses privados de seu cliente, o senador. Elas apresentaram uma tese defensiva, a de que seu cliente era vítima, direta ou indiretamente, de algum tipo de manipulação de dados de inteligência financeira na Receita Federal e no Ministério Público do Rio. Entendiam ser possível anular o caso criminal alegando ilegalidades formais, mas precisavam de um documento:
— Qual é a prova possível de ser produzida? — explicou a advogada Juliana Bierrenbach a Bolsonaro. — O Serpro [Serviço Federal de Processamento de Dados] ele um relatório. Eu até trouxe um arquivo de exemplo, que é uma apuração especial. O Serpro consegue levantar todos os acessos [em bancos de dados de órgãos públicos] que foram feitos antes da início da investigação [sobre o filho-senador]… Ou seja, você demonstra que não houve, é, uma investigação como deveria ser feita. É uma investigação completamente ilegal, inconstitucional e passível de nulidade de todos os pontos. Todos os pontos a gente consegue anular, entende?
Depois de longa explicação, Bolsonaro intervém: — É o caso de conversar com o chefe da Receita. Ele tá pedindo, é um favor.
A advogada Luciana Pires retruca: — Não é favor não, presidente.
Bolsonaro continua: — Ninguém tá pedindo favor aqui. [inaudível] é o caso conversar com o chefe da Receita. O Tostes [José Barroso Tostes Neto]. É o zero um dos caras. Era ministro meu e foi pra lá. Sem problema nenhum. Sem problema nenhum conversar com ele. Vai ter problema nenhum conversar com o Canuto [Gustavo Canuto, ex-ministro do desenvolvimento Regional que assumira a Dataprev, empresa estatal de processamento de dados] … Eu ‘caso’ conversar com o Canuto?
— Sim, sim — responde a advogada Luciana Pires. Aparentemente, Bolsonaro havia confundido Dataprev com Serpro. Ela prossegue: — Com um clique, olha, em tese, com um clique você consegue saber se um funcionário da Receita [inaudível] esses acessos lá.
O chefe do GSI comenta — Tentar alertar ele que… ele tem que manter esse troço fechadíssimo. Pegar de gente de confiança dele. Se vazar…
Bolsonaro complementa: — Tá certo. E, deixar bem claro, a gente nunca sabe se alguém tá gravando alguma coisa, que não estamos procurando favorecimento de ninguém.
A partir dessa reunião, funcionários do governo Bolsonaro foram mobilizados em auxílio à defesa do filho-senador nas acusações criminais no caso dos desvios de recursos públicos na Alerj. A Abin, por exemplo, foi usada para desacreditar servidores da Receita.
Resta uma nuvem de suspeitas, porque duas advogadas foram ao Planalto e apresentaram ao presidente, dois assessores diretos e, depois, a outros funcionários graduados uma denúncia sobre manipulação de dados sigilosos em órgão públicos.
Na versão delas, na reunião de agosto de 2020, isso já ocorria há 14 anos, tinha indícios demonstrados em outros processos judiciais – num caso, haveria sentença —, com envolvimento de integrantes da Receita Federal e do Ministério Público no Rio.
Se passaram quase quatro anos entre dois governos, mas, até agora, não há notícia de qualquer investigação específica sobre essas supostas delinquências no setor público.
Na denúncia das advogadas, conforme a gravação clandestina liberada pelo STF, seria fato conhecido na Receita, no Ministério Público do Rio e em suas respectivas corregedorias, além de ter registro em relatórios internos — não divulgados — de um organismo corporativo, o Conselho de Árbitros do Sindifisco, o sindicato dos auditores fiscais da Receita Federal. Falta jogar luz sobre esse pedaço do lado obscuro do poder.