Uma das peculiaridades da trama em que se enredou Jair Bolsonaro é a rarefeita adesão da elite empresarial. Até onde as investigações já permitem ver, foi escasso o engajamento de empresários.
Houve, sim, um grupo simpático aos apelos do capitão. Alguns produtores rurais de São Paulo, Minas e do Centro-Oeste, por exemplo, começam a ser expostos como financiadores. Ampla maioria do setor privado, porém, manteve-se à distância do golpismo. Empresas relevantes nos segmentos econômicos de grande concentração de capital — finanças, agronegócio, mineração e comércio — foram além: decidiram ficar na contramão, financiaram, subscreveram e publicaram manifestos públicos em defesa do regime democrático.
Para os mais cínicos, entre a “bíblia” bolsonarista e a “ameaça” lulista, a elite empresarial achou mais produtivo concentrar atenção na ciranda financeira pós-pandemia, no jogo a dinheiro sobre a escalada dos juros administrados pelo Banco Central. Mais relevante, talvez, tenha sido a mudança dos ventos: o extremismo bolsonarista se tornou radioativo e, pela própria natureza, ruim para os negócios.
No século passado, conspirações para golpes de estado decolavam sob impulso do ativismo empresarial e com o patrocínio de grupos interessados em obter privilégios estatais nas disputas por mercados. Foi assim há 60 anos, quando empresários se juntaram a generais viciados em sedições, organizaram e financiaram o golpe contra o governo constitucional de João Goulart, um latifundiário gaúcho visto na Casa Branca como ameaça comunista. Sustentaram o regime autoritário e contribuíram com órgãos da repressão política.
Grandes empresas e a então influente Federação das Indústrias do Estado de São Paulo atravessaram o regime autoritário celebrando êxitos episódicos em reservas de mercado danosas ao desenvolvimento, como foi o caso da proibição de importação de computadores e softwares.
Ampararam a multiplicação de lucros na produtividade em decretos do regime e remeteram seus impasses trabalhistas à arbitragem dos órgãos de segurança. A violenta repressão aos protestos salariais de 1968 em Contagem (MG) e Osasco (SP) foi facilitada quando diretores das empresas entregaram as plantas das fábricas aos comandantes das tropas de choque. O relacionamento fluiu até o ocaso da ditadura. A incorporação de oficiais militares às folhas de pagamento foi uma das formas de garantir linha direta com o aparato de repressão.
“Desvario golpista de Bolsonaro vai deixar sequelas na vida política”
Houve, também, civis agregados em missões permanentes. Entre 1971 e 1978, por exemplo, a Fiesp manteve um mensageiro em visitas periódicas ao Departamento de Ordem Política e Social. Identificado como “Dr. Geraldo” nos livros de entrada do Dops, Geraldo Resende de Mattos era auxiliar do industrial Nadir Dias de Figueiredo, um dos fundadores da entidade e figura ímpar no empresariado paulista. Durante sete anos, ele frequentou as seções de Política e de Informações, três a quatro vezes por semana e sempre no final do expediente.
Seis décadas depois da bem-sucedida conspiração civil-militar contra o governo Goulart, é notável a insuficiência de adesão da elite empresarial à empreitada golpista de Bolsonaro e dos seus generais palacianos, coordenados por Walter Braga Netto, candidato a vice-presidente na disputa eleitoral de 2022. As razões parecem tão óbvias que flertam com a irrelevância, e, por isso mesmo, merecem autópsia rigorosa dos historiadores.
Bolsonaro teve apoio minoritário do agronegócio, da mineração e do comércio e, indicam os inquéritos, acabou restrito ao uso da estrutura estatal e dos recursos públicos — do governo e do Partido Liberal — para sustentar a aventura que, agora, tende a deixá-lo imobilizado por alguns anos no banco dos réus do Supremo Tribunal Federal. Na companhia de filhos, deputados, senadores, generais, coronéis e auxiliares civis, realizou a proeza de conspirar para se enquadrar numa inédita coletânea de crimes contra a Constituição e o Estado.
Haverá sequelas. Antigos aliados no Centrão apostam na condenação dele e de todos os envolvidos, incluída a liderança do Partido Liberal. Puro palpite, mas, nessa hipótese, o Supremo estaria diante do renovado dilema sobre o que fazer em processos criminais contra um ex-presidente. Juízes em Brasília sugerem que a execução da sentença de Fernando Collor, já condenado por corrupção a oito anos e dez meses de prisão, deve orientar a conduta do tribunal no caso Bolsonaro.
O desvario golpista no Palácio do Planalto vai custar caro à vida política brasileira. Por longo tempo.
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Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880