Um voto, faltava um único voto. O plenário parecia avenida central com o alvoroço de 559 parlamentares à espera da votação. Estava em jogo o capítulo da Constituição sobre a ordem econômica e financeira, o catalisador do embate ideológico sobre capital e trabalho.
Já haviam definido a abertura de 31 palavras — o caput, no jargão legislativo: a “valorização do trabalho humano” e a “livre-iniciativa” seriam os fundamentos das leis econômicas.
O relógio avançava, o prazo para votação se esgotava. Um deputado esquadrinhava o tumulto engravatado. Defensor do liberalismo, Francisco Dornelles comandara a Receita Federal na ditadura e havia sido ministro da Fazenda na redemocratização. Procurava um aliado.
Viu o deputado Luiz Inácio Lula da Silva entrar no plenário e foi pedir-lhe apoio. Ouviu em resposta: “Deve ser contra o povo”. Conversaram, e Lula aceitou subscrever o texto, que dizia: “É assegurado a todos livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Mais liberal, é difícil. A emenda virou parágrafo solitário no artigo 170 da Constituição. “Está lá graças ao voto de Lula”, contou Dornelles à jornalista Cecília Costa no recém-lançado livro de memórias O Poder sem Pompa.
Lá se foram 34 anos. O Brasil mudou e Lula é presidente novamente. Está de volta ao começo de uma história antiga, assim descrita por ele ao Congresso na posse de 2003: “O Brasil conheceu a riqueza dos engenhos e das plantações de cana-de-açúcar nos primeiros tempos coloniais, mas não venceu a fome; proclamou a independência nacional e aboliu a escravidão, mas não venceu a fome; conheceu a riqueza das jazidas de ouro, em Minas Gerais, e da produção de café, no Vale do Paraíba, mas não venceu a fome; industrializou-se e forjou um notável e diversificado parque produtivo, mas não venceu a fome. Isso não pode continuar assim”.
O que planeja e como pretende fazer para mudar vai-se descobrir a partir deste domingo, 1º de janeiro. Ele atravessou a campanha, a eleição e a transição sem dar pistas.
“Lula tem sua terceira chance de mudar o que está aí”
Lula-III é enigma a ser decifrado. Nas apostas sobre o rumo do governo deu empate até entre os argutos agentes do mercado financeiro. Dividiram-se: forasteiros confiam, nativos desconfiam do que vem aí.
O otimismo dos investidores estrangeiros com o novo governo tem sido invariável — e inversamente proporcional ao pessimismo dos brasileiros na travessia deste ano eleitoral.
Em 2022, os residentes no exterior jogaram 110 bilhões de reais na compra de ações de companhias instaladas no país, principalmente de empresas estatais. Os locais preferiram vender papéis no mesmo valor, informou a bolsa de valores (B3) na véspera do Natal.
Uns exibiram voracidade. Outros mostraram inapetência, amparados em presságios de retrocessos na estabilidade monetária e em regulamentos críticos (Lei das Estatais), com eventual aumento do endividamento público.
Alguém vai perder dinheiro quando o novo governo for decodificado. É na maré baixa que se vê quem está nadando nu, como diz Warren Buffett, ícone do mercado de capitais. Aos perdedores restará o clássico desconsolo financeiro, assim traduzido pelo humorista Marty Allen: o melhor momento para comprar ou vender ações “é o ano passado”.
Poucas certezas são possíveis sobre Lula-III. Uma é a de que já fez da Presidência usina de engenharia política. Assumiu os papéis de “superministro”, de árbitro dos limites do liberalismo na economia e, ao mesmo tempo, de negociador com o Congresso e os partidos. Se vai dar certo, nem ele sabe, mas possui milhagem acumulada de intuição, pragmatismo e habilidade.
Ao PT e satélites caberá tocar o “centro de governo”, como chamam, e as áreas-chave nas decisões de gastos. Os demais têm lugar reservado no “coro” governamental para entoar o velho refrão sobre a necessidade de mais receita para novas despesas.
Parte difícil será a das reuniões ministeriais. Se cada um dos 37 ministros falar por apenas cinco minutos, sequencialmente, o presidente vai passar três horas ouvindo, ininterruptamente, sem poder sair da cadeira.
Na posse de 2003, Lula diagnosticou um país que cresceu, enriqueceu, mas não redistribuiu renda nem “venceu a fome”. Está diante da sua terceira chance de mudar o que está aí. Como disse dezenove anos atrás, “não pode continuar assim”.
Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822