Na manhã de sexta-feira, 25 de fevereiro do ano passado, Vladimir Putin acordara o mundo com uma guerra contra a Ucrânia. Em São Paulo, a 12 000 quilômetros do front, o candidato Lula sugeriu, com ironia: “Acho que é importante mandar (Jair) Bolsonaro lá para ver se ele consegue resolver o problema”.
Passaram-se sessenta semanas. Putin está atolado nas estepes, Bolsonaro luta pela sobrevivência na política e Lula virou alvo do sarcasmo diplomático: na terça-feira 18 foi convidado a visitar as cinzas da Ucrânia para compreender que não é possível “resolver o problema, se não na primeira cerveja, na segunda ou na terceira”, a partir de um peculiar devaneio sobre igualdade entre vítima e agressor, um país invasor e outro invadido.
Com apenas 100 dias de governo, Lula conseguiu criar uma crise com os Estados Unidos e a União Europeia ao insinuar alinhamento à “nova ordem” chinesa-russa na visita a Xi Jinping, em Pequim, e em reunião com o chanceler da Rússia Sergey Lavrov, no Palácio do Planalto. Sempre em nome da “paz”, equidistante da “hegemonia” americana.
Lula exibe-se inebriado no papel de “pacificador” em jogo geopolítico sobre o qual o Brasil não possui controle ou influência. Suas chances de mediação florescem num jardim de irrealismo, como indicam suas conversas mais recentes com os presidentes Joe Biden (EUA), Xi Jinping (China), Emmanuel Macron (França), Volodymyr Zelensky (Ucrânia), o chanceler alemão Olaf Scholz e o russo Sergey Lavrov.
Ao mesmo tempo, o Itamaraty vagueia em desnorteio no contraponto ao assessor para política externa Celso Amorim, cuja influência cresceu na esteira da gratidão de Lula pela atuante defesa no exterior de sua causa política enquanto estava preso em Curitiba. O resultado tem sido uma diplomacia de espetáculo, atrapalhada pela própria estridência.
“Falta mostrar o que o país ganhou com a diplomacia de espetáculo”
Amorim já mostrou maior afeição à ambiguidade e à discrição na diplomacia.
Era chanceler no primeiro governo Lula, quando foi acordado numa noite de julho de 2003 com a notícia do desembarque não autorizado de tropas estrangeiras no país. Sem pedir licença, o presidente francês Jacques Chirac enviara uma unidade de operações especiais para resgatar a senadora franco-colombiana Ingrid Betancourt, sequestrada pela narcoguerrilha (Farc) e mantida em cativeiro amazônico, próximo à fronteira da Colômbia com o Brasil. A crise com a França foi desmontada pelo Itamaraty. Em silêncio.
Amorim está no centro das críticas dentro e fora do governo pelas contradições na política externa, supostamente mais preocupada com a contestação à “hegemonia” dos EUA e aliados do que com resultados em objetivos de desenvolvimento em meio ambiente, transição energética e inovação tecnológica. No Planalto, há quem o veja empenhado numa espécie de revanche pelo fiasco de 2010 na mediação de um acordo nuclear Irã-EUA, em parceria com a Turquia, quando Lula vestiu a fantasia de “pacificador” de convulsões internacionais.
É uma possibilidade, talvez exagerada na sua capacidade de influência como assessor presidencial e, certamente, descolada da realidade do mundo em que Lula escolheu viver depois da trágica experiência de 580 dias na prisão, por condenação no caso Lava-Jato — sentença anulada no ano passado.
Lula atravessou quatro décadas, desde os tempos de negociador sindical no ABC paulista, equilibrando-se na crença de que o lado escuro da força é representado por Estados Unidos, Europa e países aliados. Saiu da prisão, nas suas palavras, “com a consciência” de que venceu uma conspiração internacional para destruí-lo politicamente, assim como o seu projeto de reforma do capitalismo brasileiro.
“A Lava-Jato” — repetiu em entrevista ao portal Brasil 247, às vésperas da viagem à China — “fazia parte de uma mancomunação entre o Ministério Público brasileiro, a Polícia Federal brasileira e a Justiça americana. O Departamento de Justiça! (dos EUA). Eu tenho certeza, porque foi uma coisa que envolveu toda a América Latina e era uma coisa que era para destruir mesmo.”
Ressentimento é a digestão mais difícil. Lula decidiu ter os próprios fatos, e a despeito da coerência com a vida real, essa opção condiciona seu modo de fazer política neste terceiro mandato. Falta ao governo mostrar o que o país ganhou nesse ensaio de diplomacia de espetáculo antiocidental.
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Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838