Uma insurreição estimulada, coordenada e financiada com intenção golpista. E uma crise humanitária com múltiplos indícios de crimes de genocídio, contra a humanidade e o meio ambiente. Isso aconteceu no Brasil, nas últimas três semanas de janeiro.
Quem quiser pode acreditar que tudo não passou de acaso — é legítimo. Está visível, porém, o excesso de coincidências e o histórico de sincronicidades.
Não houve improviso, e a mensagem embutida sobre a realidade é puro veneno: muita coisa está fora de ordem no sistema político nacional.
A falência múltipla de órgãos de Estado foi determinante na invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Foi decisiva, também, para o aumento (cerca de 30%) das mortes por fome e doenças evitáveis entre os ianomâmis de Roraima, sitiados no avanço do garimpo ilegal de ouro e cassiterita (fonte do estanho), que se ampara na coalizão de interesses regionais com os do crime organizado em expansão na Amazônia.
Jair Bolsonaro, filhos parlamentares, aliados civis e militares passaram os últimos 48 meses instigando debate sobre golpe nas ruas, nas empresas, no governo e no Congresso. Banalizaram o discurso de violência, as propostas ilegais e inconstitucionais.
Fomentaram a tragicomédia de 8 de janeiro em Brasília, cuja melhor tradução está numa alegoria de bolso — a minuta de decreto de “estado de defesa” na Justiça Eleitoral para transformar o derrotado Bolsonaro em vencedor nas urnas de outubro. Um exemplar estava com o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, agora preso por conspiração, mas existiam cópias “na casa de todo mundo”, confessou Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal, o maior do Congresso, que abriga e remunera Bolsonaro com recursos públicos (via Fundo Partidário).
Avançou-se na liquefação política nacional, evidente desde os protestos de 2013, com a renovação de relações perigosas entre governo e Congresso, balizadas por verbas secretas, permissividade legislativa e permanente contemporização.
“A contaminação da impunidade pode ser devastadora na política”
Meses atrás, por exemplo, um deputado condenado a oito anos de prisão e à perda do mandato por crimes constitucionais acabou empossado na Comissão de Constituição e Justiça. No prédio ao lado, um grupo de senadores promoveu audiência pública de escracho institucional, com o Supremo Tribunal Federal no alvo central.
Nessa mesma época, a quase 3 000 quilômetros de distância de Brasília, o governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), liderou a aprovação, em tempo recorde, de lei estadual incentivando a multiplicação das frentes de garimpo ilegal na terra dos ianomâmis, que ele considera “bichos” do mato.
Entorpecidos em lucros financeiros com a alta nos preços do ouro (315 000 reais o quilo) e do estanho (275 000 a tonelada), nos últimos cinco anos, Denarium e aliados restringiram a fiscalização e proibiram a destruição de equipamentos já interditados (dragas e aviões).
Misteriosamente, três dezenas de aviões apreendidos voltaram às rotas de abastecimento. Enquanto isso, um helicóptero venezuelano, camuflado, invadia o espaço aéreo e depositava corpos de garimpeiros brasileiros em Iracema, próximo à reserva indígena.
No Planalto, no Congresso e nas Forças Armadas prevaleceu o silêncio eloquente sobre a tragédia humanitária em andamento, similar ao mantido sobre os acampamentos de bolsonaristas radicais nas portas dos quartéis, em mais de 150 cidades, até o ataque às instituições no domingo 8 de janeiro.
Bolsonaro comandou a etapa mais recente dessa convergência para o vale-tudo, segundo dezena e meia de processos judiciais. Refugiado no exterior, insufla seguidores com uma recalibragem do fracasso: “Vamos mudar o destino do Brasil, podem ter certeza, em pouco tempo teremos notícias”, disse na semana passada. Assiste ao prenúncio de punições num reordenamento institucional que, aparentemente, vai ter baixa tolerância a acordos de impunidade, como a anistia ampla, geral e irrestrita já encaminhada no Congresso.
O excesso de provas e o rito simplificado da Justiça Eleitoral tornam previsível a primeira condenação de Bolsonaro e de alguns dos seus ministros no segundo trimestre. Se confirmada, ele ficaria impedido de disputar eleições como a da prefeitura do Rio no ano que vem ou da Presidência da República em 2026.
Assim como o mercúrio do garimpo na cadeia alimentar dos ianomâmis, a contaminação da impunidade política pode ser devastadora para a sociedade que se acha civilizada.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827