Se o problema de Brasília é o tráfico de influência, o da Amazônia é a influência do tráfico de drogas, de terras, de madeira, de animais e de minerais — ouro, diamante, cassiterita, urânio e manganês, entre outros. E isso só é possível com respaldo político em Brasília, naturalmente.
Fosse um país, a Amazônia seria o sexto maior em extensão. Abrange mais da metade (59%) do território nacional e abriga treze de cada 100 brasileiros entre margens de 25 000 quilômetros de rios navegáveis.
Nesse pedaço semi-habitado do planeta, com menos de seis pessoas por quilômetro quadrado, a economia do crime floresce sobre ruínas de uma rede institucional preservada em condições precárias desde a Colônia, cujo objetivo é guarnecer a soberania do Brasil na maior parte (60%) da floresta compartilhada com meia dúzia de países vizinhos.
Um retrato da ameaça de falência do Estado brasileiro está na violência impulsionada pela economia do crime, que progressivamente condiciona a vida e desagrega a gestão política na região.
Fosse um país, a Amazônia ocuparia o 26º lugar entre as nações mais violentas na virada do milênio.
Nesta segunda década do século XXI, porém, já teria avançado para a quarta posição, atrás de El Salvador, Venezuela e Honduras.
Foi o que constataram os pesquisadores Rodrigo Soares, do Insper, Leila Pereira e Rafael Pucci, da PUC-Rio. Eles reviraram bancos de dados governamentais (Datasus) e do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde, consórcio da Universidade de Washington com a Fundação Bill e Melinda Gates.
A Amazônia está se tornando um território sem lei, num processo de dissolução institucional com alto custo humano. Ali estão 14% dos municípios brasileiros, como o de Altamira, no Pará, maior que onze estados ou países como Dinamarca, Holanda e Bélgica. Quatro deles (do total de 775) começaram esta década se destacando entre as dez áreas mais violentas do país. Na lista nacional dos 100 municípios onde mais se mata, 23 também são amazônicos, segundo a pesquisa concluída no último dezembro.
“A economia do crime floresce no vácuo do Estado na Amazônia”
É notável que esses campeões da violência na Amazônia sejam municípios pequenos, com menos de 100 000 habitantes. Eles concentraram 12 160 mortes violentas em duas décadas, entre 1999 e 2019. Isso equivale a um terço do total de vítimas deixadas pela guerrilha comunista (Farc-EP) em cinco décadas de guerra civil na Colômbia, segundo a contagem oficial.
Representa, também, quase o dobro das mortes no conflito permanente entre israelenses e palestinos, na Faixa de Gaza — indica a contabilidade das Nações Unidas consultada por Soares, Pereira e Pucci.
Sete de cada dez homicídios nesses pequenos municípios amazônicos tiveram relação com atividades como narcotráfico, caça, pesca e desmatamento ilegais, grilagem de terras e contrabando de minerais.
Negócios do tráfico e dos crimes ambientais fluem pelos mesmos canais financeiros e políticos. E é no Pará que a economia do crime avança mais rápido. Em duas décadas, o estado duplicou (para 40%) a sua participação no total de homicídios na Amazônia.
Nos anos 90 do século passado, as fronteiras brasileiras com Bolívia, Peru e Colômbia, principais produtores mundiais de cocaína, se tornaram veias abertas para o fluxo ilegal de drogas, madeiras e minérios para Estados Unidos, Europa e África. De país de trânsito, o Brasil passou a um dos maiores mercados consumidores de drogas.
Novas multinacionais brasileiras nasceram na proteção de rotas de tráfico e de contrabando. Ascendem em parcerias com os cartéis do México, da Colômbia, do Peru e da Bolívia na produção na floresta e na distribuição, via portos e aeroportos de Manaus, Fortaleza e São Luís.
As três principais máfias nacionais guerreiam pelo domínio do espaço amazônico. É de Manaus o único grupo (FDN) com efetivos e finanças suficientes para competir com as máfias de São Paulo (PCC) e do Rio (CV).
Trata-se de uma indústria capitalista, assentada em redes de interesses locais, mas hierarquizada e conectada ao mercado financeiro, responsável pelo ciclo da lavagem, a legalização, dos lucros.
É um bem-sucedido projeto empresarial latino-americano, cujos dinamismo e lucratividade crescem no vácuo do Estado.
No lado brasileiro, a prevalência do “liberou geral” sob Jair Bolsonaro evidencia riscos de anarquia institucional, ou anomia, pelas sucessivas demonstrações de incapacidade estatal de assegurar lei, ordem e controle sobre mais da metade do território. A economia do crime na Amazônia se tornou relevante demais para ficar à margem do debate eleitoral.
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Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795