Há 500 vagas na garagem do Edifício Tancredo Neves, mais conhecido como Centro Cultural Banco do Brasil, sede da transição de governo. Como a equipe de Lula já soma 417 pessoas, e aumenta a cada dia, vai acabar faltando vaga no estacionamento coberto — um risco para quem frequenta o lugar neste final de primavera, período de chuvas intensas em Brasília.
O prédio do CCBB serpenteia a paisagem com seus 3 000 metros quadrados, em dois andares de janelões, sobre grandes pilotis que dispensam paredes. É um ícone do modernismo arquitetônico de Oscar Niemeyer, em parceria com a paisagista Alda Rabello Cunha, erguido a 6 quilômetros do Palácio do Planalto.
Funciona como um túnel do tempo na atual cenografia política. Dentro, o PT e os partidos aliados disputam milimetricamente a liderança no desenho de uma ponte para o futuro. Fora, o projeto é atropelado pela escassez de dinheiro e pelos interesses monetários de parlamentares há tempos convertidos em vereadores federais.
Sobram cabeças, faltam Orçamento e, principalmente, voz de mando na transição de governo. Foi notável na semana passada o esforço do chefe do Banco Central, Roberto Campos Neto, na busca de um representante do presidente eleito com quem pudesse conversar sobre as turbulências nos mercados financeiros.
É situação recorrente, consequência da falta de clareza sobre o rumo de uma economia há décadas estagnada, com inflação constante, déficit e dívida pública crescentes.
Desta vez, a causa estava na vaga proposta de emenda constitucional para livrar, permanentemente, uma parte das despesas do novo governo fora dos limites legais. Acabou interpretada como sinal de aumento expressivo no endividamento público a partir de janeiro, com reflexos nas taxas de juros e na inflação.
Mudar a Constituição tornou-se um vício. Foram feitas 25 modificações nos últimos quatro anos, uma a cada dois meses. Onze aconteceram entre janeiro e agosto. Ou seja, neste ano eleitoral houve uma alteração a cada 33 dias. O texto constitucional perdeu o sentido de permanência, de estabilidade, e a Carta virou um periódico.
“Erros de Lula atrapalham a cenografia da transição”
É compreensível a ansiedade de Lula para obter um cheque em branco (em torno de 200 bilhões de reais) para os próximos quatro anos, do mesmo Congresso que deu a Jair Bolsonaro quatro vezes mais.
O problema é que, nessa aflição, empenhou a tropa do novo governo numa batalha parlamentar sem projeto, sem autor, sem assinaturas — como notou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) —, sem ministros escolhidos ou negociadores definidos na Câmara e no Senado.
Na semana passada, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) também tentava localizar alguém com “autorização” de Lula para conversar sobre a PEC da Transição. Ele construíra uma alternativa: a concessão legislativa de um extra (de 80 bilhões de reais anuais) para financiar a “sustentabilidade social”, como definiu, fora dos atuais limites para gastos públicos. Estava 60% abaixo do valor pretendido, mas era um texto para abrir a negociação política. Mandou o projeto aos economistas da equipe de transição. Responderam que não eram responsáveis pela proposta de emenda constitucional. Como o presidente do Banco Central, o senador se perdeu na busca de alguém “autorizado” a conversar sobre o principal item da pauta imediata do futuro governo.
Em duas semanas depois da eleição, Lula viu-se refém da ausência de um projeto de governo, da própria descoordenação política e da autofagia partidária na equipe de transição. Tropeçou na voragem de um Congresso em fim de mandato, onde um de cada três parlamentares não se reelegeu, e a maioria que permanecerá se mostra mais interessada em fatiar o Orçamento do que em discutir políticas de redução das desigualdades sociais e regionais.
Lula ainda não sinalizou o que pretende, como vai fazer e com quem vai governar, principalmente em áreas-chave como meio ambiente, economia, Forças Armadas e relações exteriores.
Da eleição à posse corre um longo tempo, e ele vai precisar demonstrar competência como nunca. A seu favor tem um histórico de intuição, pragmatismo e habilidade em escapar de armadilhas. No novo mundo de Lula, talvez isso não seja suficiente.
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Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817