O vigor da inflação surpreende e volta a ter peso específico na cena política.
Sinaliza dificuldades crescentes para a campanha de reeleição de Jair Bolsonaro. E impõe à oposição o desafio de propor um redesenho do país, na eleição de 2022, se realmente estiver disposta a sair da letargia retórica da “mudança”.
Julho terminou com recorde inflacionário (8,99% em 12 meses), no índice do IBGE sobre os preços no atacado. Beira o patamar de dois dígitos (9,85%) na média dos preços ao consumidor.
Não importa a régua, os resultados convergem para um avanço acelerado, persistente e disseminado da inflação.
É a expressão matemática de um desequilíbrio grave na estrutura econômica que já era frágil, foi duramente afetada pela pandemia, e continua sem perspectiva de retomada plena por causa do atraso na vacinação contra a Covid-19.
O impacto na renda das famílias pobres é evidente. Elas destinam cerca de 60% do orçamento domiciliar à compra de comida.
Tomando-se os preços da cesta básica de alimentos como referência, os mais pobres perderam um quarto do seu poder de compra nos últimos 12 meses.
Na média, o custo da cesta básica aumentou 25% nesse período, calcula a Fundação Getulio Vargas com base em dados coletados pelo IBGE.
É excessivo e, por óbvio, tem efeito proporcionalmente corrosivo na imagem de qualquer governo. No caso, arrasta o presidente em campanha pela reeleição ao centro do alvo da crítica da massa de eleitores — 80% pobres. Ele já é líder em rejeição, com cerca de 60% de desaprovação nas pesquisas.
Bolsonaro se tornou um candidato de alto risco. Preside um país com 60 milhões de pessoas dependentes do auxílio estatal para sobreviver, em meio ao descontrole da crise pandêmica que já matou 560 mil pessoas. Se vê acossado no Congresso pela CPI da Pandemia, e está cada dia mais dependente de aliados ocasionais para sustentar uma base parlamentar instável como gelatina.
Pelo que se viu ontem, ela ainda não lhe garante nem metade dos votos mais um no plenário da Câmara — quórum mínimo necessário para aprovar um projeto de lei ordinário.
Com toda pressão de manifestações de rua e até desfile de blindados na Esplanada dos Ministérios, ontem, o governo só conseguiu reunir 229 deputados a favor do seu projeto de emenda constitucional para tornar obrigatório o voto impresso. Para aprovar, precisava de pelo menos 308, em dois turnos.
O horizonte político está turvado pela opção de governar via tumulto. Ao fazer do confronto com o Judiciário um instrumento de marketing eleitoral, Bolsonaro torna real o risco de liquefação judicial da sua candidatura à reeleição.
Começou a semana com quatro inquéritos no circuito entre o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral, sujeito ao enquadramento em onze crimes tipificados nos códigos penal, eleitoral e na lei de segurança nacional, que começou a ser alterada ontem no Senado.
A maioria pode levá-lo a duras punições, quando estiver na planície política, sem a blindagem inerente à função de presidente. Isso a partir de 1º de janeiro de 2023, caso não consiga se reeleger.
Até às urnas, no próximo ano, há um longo caminho numa situação absolutamente sem precedentes na história republicana.
A tática do confronto com o Judiciário, eventualmente, pode abreviar esse roteiro. Se arrisca, por exemplo, a uma eventual suspensão da sua candidatura em plena campanha, no ano que vem, com consequente desgaste junto ao eleitorado.
Por enquanto, os efeitos da estridência presidencial ainda são relativamente menores, se comparados com a relevância dos impactos dos desequilíbrios sociais e econômicos que estão aí, traduzidos na aceleração do ritmo da inflação.
Nesse quadro, sobressai uma novidade: o aumento do risco governamental derivado das manobras contábeis para se ampliar os gastos públicos no próximo ano eleitoral, à margem da legislação de responsabilidade fiscal. Isso foi percebido de forma negativa pelas empresas e já começa a afetar os planos de negócios.
Fundos de investimento, por exemplo, estão alertando seus clientes sobre a possibilidade de perdas com ativos financeiros no Brasil. Interpretam os movimentos no Congresso (“reforma” do teto de gastos, moratória em títulos precatórios etc.) como uma “volta ao passado”. Ou seja, uma tempestade de incertezas que se espraia nas contas públicas, na taxa de inflação e de juros, na lenta retomada econômica por causa dos atrasos na vacinação contra a Covid-19, e a mais grave crise hídrica das últimas nove décadas.
Não significa que o segundo semestre seja exatamente assim. Mas persistem dúvidas e elas passaram a ser crescentes nas empresas financeiras, o que é fato novo. Num exemplo, o Fundo Verde, do empresário Luis Stuhlberger, admitiu em carta recente a investidores: “Essa transição, ou incerteza, tem tornado o processo de gestão muito mais complexo.”
Bolsonaro optou pelo tumulto como marketing da reeleição. É do jogo. Criar ilusões é uma forma de distrair a atenção dos problemas reais. Porém, a 14 meses da disputa presidencial, a realidade insiste em bater à porta do Palácio do Planalto. E é inútil culpar a janela pela paisagem: o presidente é quem está derretendo o candidato.