Pós-pandemia?! Será mesmo?
Uma reflexão sobre como nos (des)cuidamos diante de um vírus que ainda circula e apronta por aí

A vida exige equilíbrio. Assentar-se e ficar ereto sobre os pés são os primeiros desafios. A evolução da espécie nos deu essa habilidade.
Caminhar, correr, caçar e explorar nos trouxe até aqui. Pela necessidade de nos movermos e explorarmos o planeta, nós nos equilibramos e aprendemos até a voar.
No momento que escrevo este texto, encontro-me a 10 mil metros de altura, voando a 800 km/h. Magia da tecnologia e da evolução humana.
O mecânico fica lá embaixo. Mas, tudo bem, funciona! Espero!
Entretanto, apesar de todos os avanços que nos permitem atravessar continentes em poucas horas, ainda não aprendemos a nos comunicar de forma adequada.
No meu trajeto de Belo Horizonte a Copenhagen, na Dinamarca, apenas eu e uns três gatos pingados (asiáticos) usávamos máscaras. Pelo visto, decretaram o fim da pandemia e não me avisaram.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) fez um evento com o título “Resistência bacteriana no pós-pandemia”. A doutora Ana Gales, professora da Unifesp, uma das debatedoras e especialistas no assunto, pontuou, de forma contundente: “Pós-pandemia? Terminou?!”
Epidemiologicamente, não temos elementos para sair soltando foguetes e queimando máscaras e abandonando de vez os cuidados que duramente aprendemos. Até porque há uma nova variante do vírus no ar.
Não sei se vocês perceberam, mas até o álcool em gel, que abundava em todos os locais, agora está desaparecendo. A humanidade, que ficou por três anos literalmente “com álcool na mão”, se esqueceu rápido do sufoco que passou. Ou melhor, que não passou.
Na maioria dos estados brasileiros e países europeus, a incidência permanece entre 50 e 100 casos por 100 mil habitantes, apesar de as pessoas não estarem mais testando com a mesma frequência de antes. O Sars-CoV-2 continua sendo a principal causa de morte por doença infecciosa em todas as faixas etárias, aqui e acolá.
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Na semana epidemiológica 36, os dados oficiais do Ministério da Saúde registraram 332 óbitos. Ou seja, equivale à queda de um avião com 332 passageiros por semana. Que normalidade cruel é essa?!
Os vacinados com a vacina bivalente, atualizada para a variante ômicron, atingiram até o momento um percentual ínfimo da população-alvo. Além disso, a proteção das vacinas, ou da infecção natural contra infecções sintomáticas, cai após quatro meses.
Novas variantes mais transmissíveis e com potencial de trapacear nosso sistema imunológico já circulam entre nós e no mundo inteiro. O risco matemático de novas ondas epidêmicas pelo coronavírus é de aproximadamente 20% em dois anos, aumentando progressivamente com o tempo, caso não surjam tecnologias potentes para contê-lo.
A conclusão é que o mundo cansou de se proteger contra o vírus e chutou o pau da barraca. Nos aviões, aeroportos e metrôs, as pessoas mergulham nos seus celulares e se entregam ao devaneio digital.
De bebês a noventões, todos de celular nas mãos, absortos pelo brilho das telas e da vida que brota do silício e do silêncio. A vida na ponta dos dedos e na corda bamba das incertezas epidemiológicas.
Há vida em nossas mãos, com certeza. Mas pouca consciência dos riscos que ainda corremos. Aprendemos a andar e voar na velocidade do som, mas falta luz para nos comunicarmos uns com os outros. Como dizia o velho guerreiro, “quem não se comunica, se estrumbica”.
Parece que não aprendemos nada com uma pandemia que matou mais de 6 milhões de pessoas no planeta. O Brasil ocupa o vexatório segundo lugar mundial em número de mortes por Covid-19, somando 705.313 óbitos, os quais podem ser nos dias de hoje evitados por vacinas e tratamento com drogas efetivas disponíveis no SUS.
De quantas pandemias precisaremos para perceber que, se vivemos em um “one planet”, devemos cuidar da vida com o conceito de “one health”?
* Carlos Starling é infectologista e autor do livro recém-lançado O Tempo Sem Tempo: 53 Crônicas da Pandemia (Autêntica). Este texto é uma adaptação de uma das crônicas ali publicadas