A Constituição de 1988 contribuiu decisivamente para construir nosso generoso sistema de Previdência. Acontece que não se perguntou se os benefícios seriam compatíveis com o estágio de desenvolvimento do país. Por exemplo, a aposentadoria rural dobrou, de meio para um salário mínimo (SM), sem nenhuma avaliação.
A insustentabilidade do sistema agravou-se com a elevação da expectativa de vida e com os aumentos reais do salário mínimo, que atingiram mais de 170% desde 1994 (o SM indexa dois de cada três benefícios previdenciários). Após longo debate, o Congresso aprovou a reforma da Previdência de 2019, a qual, na opinião de muitos, ainda requer novas mudanças. A aposentadoria rural ficou intocada.
Agora, três de nossos melhores especialistas — Fabio Giambiagi, Rogério Nagamine e Otávio Sidone — escreveram excelente estudo, em que apontam a urgente necessidade de uma nova mudança: A Reforma Previdenciária que Faltou: a Revisão das Regras de Aposentadoria Rural — Texto para discussão nº 11, acessível no endereço https://www.portalibre.fgv.br.
Corajosamente, os autores questionam as premissas básicas para a generosidade desse regime, quais sejam as supostas condições laborais dos trabalhadores do campo, que justificariam a aposentadoria aos 60 anos (homens) e 55 (mulheres). Não só isso mudou ao longo do tempo, mas existem situações ainda mais duras, como a dos trabalhadores da construção civil, que nem por isso podem aposentar-se tão precocemente.
“Após alterações nas últimas décadas, os trabalhadores rurais vivem mais que os urbanos”
Para eles, “a diferenciação de idades de aposentadoria poderia ser justificada pela existência de um diferencial relevante da expectativa de (sobre)vida entre trabalhadores urbanos e rurais, de maneira a igualar a duração média dos benefícios entre as clientelas”. Ao contrário, estudos indicam que a expectativa de sobrevida de indivíduos das áreas rurais é superior à obtida pelos que habitam nas regiões urbanas, para ambos os sexos e para todas as idades.
Esse diferencial, favorável aos trabalhadores rurais, se explica pelas profundas alterações das últimas décadas, principalmente o avanço da mecanização, os ganhos de produtividade, o uso mais intensivo de capital e tecnologia, a melhor qualidade do emprego, além da formalização e de seus impactos positivos sobre a remuneração.
Adicionalmente, depois que se aposentam, os trabalhadores rurais sobrevivem mais do que os urbanos. A expectativa de sobrevida dos homens do campo é de 22,3 anos e a das mulheres é de 27,4 anos, enquanto a dos urbanos é de 18,6 anos e 26,5 anos, respectivamente. Diante disso, há que se colocar em dúvida “a validade da justificativa do diferencial de idade mínima da aposentadoria a partir de diferenciais de sobrevida supostamente desfavoráveis aos trabalhadores rurais”, assinala o texto para discussão.
Fora esses argumentos, é preciso considerar também que as receitas da aposentadoria rural cobrem apenas 6% das respectivas despesas. O estudo merece a atenção de todos, particularmente de nossos líderes.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882